sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Um conto sobre sangue e cigarros

Sobre sangue e cigarros


Maldita tempestade! Disse George .

Ribombavam gotas do tamanho de pombos desgovernados no parabrisa do Buick preto. Aquela noite estava muito ruim para dirigir em qualquer direção, George já estava cansado demais para continuar, mas precisava seguir em frente, não podia se dar ao luxo de parar por muito tempo, pensou que seria legal, pelo menos, tomar um café forte e amargo em alguma parada no caminho, coisa rápida, mas necessária se quisesse sumir do mapa impune.

Tentava avistar alguma luz que denunciasse um posto, um bar de beira de estrada, uma boate, qualquer lugar que pudesse estacionar, esticar as pernas e tomar algo.

Seus olhos tateavam a escuridão, só conseguia ver poucos metros a frente, a chuva não dava sinais de melhora. Alguns quilômetros depois, avista uma pequena luz tênue que se aproxima rápido, um luminoso de néon desbotado apontava para uma parada de caminhoneiros. O Buick cruza a pista, entra em uma entrada de chão batido e saibro, o carro navega nas poças. Com os faróis baixos, segue até o local mais escondido do estacionamento da espelunca, George não queria ser notado. Ele pára o carro negro e antes de sair, olha seu reflexo assustado no espelho, ajeita os cabelos da melhor forma que pode, olha ao seu redor, o veiculo ainda tem marcas de sangue por todos os lados, confere suas roupas, elas não tem nenhuma mancha aparente, pega sua arma semi-automática de 9mm, coloca no bolso do casaco e sai do carro, a chuva estava muito forte, se molhou quase que instantaneamente, caminha em direção a luz mortiça que formava um halo quase imperceptível naquela noite escura e úmida.

George entra na baiúca, senta-se em uma mesa no canto, olha a fauna dentro do lugar, não havia mais que dez pessoas por lá, provavelmente caminhoneiros entediados tentando passar o tempo jogando bilhar e tomando umas e outras, só havia uma mulher perdida, provavelmente uma puta, era uma loira alta, que já teve dias melhores, ela conversava com o garçom baixo e careca que estava atrás do balcão de madeira marrom, grande e sem verniz.

Estava tudo bem por enquanto, ele ia pedir o café, umas aspirinas e logo iria embora.

O garçom se aproxima com uma cara nada amistosa, coloca um cardápio embolorado na frente de George, que apenas fala - Espero que seu café esteja em melhores condições que seu cardápio, me traga um copo e uma cartela de aspirinas – o garçom puxa o pedaço de papelão escrito da frente de George e sai com a mesma rapidez que tinha aparecido, volta uns minutos depois com uma jarra de café, enche a xícara de George e vai de novo conversar com a loira. Ele fala algo para a mulher, que logo após, faz uma careta se levanta, e segue tropegamente em direção à George, que nesse exato momento, começa a sentir que os olhares dos caminhoneiros se direcionavam para ele

Ela senta-se em sua frente, seus lábios carregados de batom vermelho balbuciam em uma voz tremula e bêbada - Você tem fogo doçura - ela saca de um cigarro e coloca nos lábios frouxos, George pega seu isqueiro e o acende , a chama ilumina o rosto dela por uns instantes, mostrando sua pele enrugada e envelhecida, parecia que ela também estava embolorada, talvez pelo tempo úmido ou pela umidade da vida, George aproveita e acende um cigarro pra si mesmo.

Passa-se quase um minuto antes da mulher falar alguma coisa, George , sempre quieto, observa a loira e os amigos caminhoneiros dela, que não desgrudam os olhos dos dois - Sou Darlene, venho aqui todos os dias, e não conheço você - George apenas mexe os lábios, e diz qualquer coisa desconexa, Darlene insiste. - De onde você vem benzinho, quer um pouco de diversão comigo, se for um bom menino dou um desconto para você. - As palavras caiam como uma cachoeira daqueles lábios moles, George estava quieto, não queria conversar, só queria terminar seu café e ir embora.

Darlene estava ficando alterada, já estava bêbada , começou a falar mais alto e o silêncio de George a fez ficar enfurecida, ela se levanta e grita a plenos pulmões – Olha ai gente, o galã aqui, acha que é bom demais para conversar com a pobre Darlene – George a puxa pelo braço e a faz sentar – Fique boazinha ai, que te pago uma bebida – um dos brutamontes que assistia a cena se aproxima e Darlene apenas gesticula para ele que está tudo bem. George pensa ter sido péssima idéia ter parado ali.

Ela chama o garçom e pede sua bebida – Bob traga mais uma dose, é por conta do cavalheiro aqui. – Em seguida o careca chega com um shot de whisky puro, que ela mata em uma talagada sem fazer careta. – Querido agora estamos nos entendendo melhor, o que você está fazendo aqui, essa hora, sozinho? mamãe não falou que era perigoso andar à noite? – George apenas entorna seu café com duas aspirinas e responde tudo de forma monossilábica enquanto a puta tagarelava como um papagaio de voz estridente.

George pensa no corpo de Suzanne, sua ex-mulher, jogado no chão da sala da casa dela, será que alguém já o teria encontrado? A discussão tinha começado no Buick, ela nunca tinha aceitado sua decisão de ir embora, mesmo separados a mais de um ano, ela ainda nutria por ele uma paixão obsessiva, com ligações insistentes no meio da madrugada, para saber se ele estava em casa ou com alguém, chegou ao cúmulo de por um detetive em seu encalço, ligava para os amigos e conhecidos. Tudo estava fora de controle há tempos, ele já não agüentava mais tanta pressão, já tinha preparado tudo para sumir da cidade, já tinha programando ir para o país vizinho, recomeçar tudo do zero naquela noite. Suzanne estava descontrolada e se tornando inconveniente demais, ele ia comunicá-la da partida e acabar de vez com isso, colocar um ponto final nessa paranóia, afinal, um homem não pode viver assim. Ligou convidando-a para jantar, para tentar resolver isso de forma civilizada. Colocou todas suas poucas coisas no porta-malas do carro, e seguiu até o bairro afastado e deserto, onde ele morou com ela por quatro anos. Esperou por alguns minutos ela se encaminhou até o carro parado na frente da casa, Suzanne havia entendido o convite para jantar de forma errada, apareceu com um lindo vestido de noite, imaginando que George iria se reconciliar com ela, quando entrou no Buick tentou beijá-lo, como se nada tivesse acontecido, falou como ela tinha sido tola e estava muito feliz em tê-lo de volta. George a afasta com um safanão e começa a falar sobre tudo e sobre as atitudes dela e o porque de ter vindo. Suzanne depois de uns segundos, com ódio e com seus sentimentos feridos, se descontrola, e no meio de sua cólera, tirou os sapatos pretos de saltos finíssimos - os preferidos de George - e começou a golpeá-lo na barriga e nas costas, ele apenas tentava segurá-la, quando em um golpe da mão de Suzanne, o porta-luva se abre, de onde cai a 9 mm de George. Em um lance ágil, Suzanne pega a arma e aponta para ele, o acuando entre o volante e a porta do motorista - Não Suzanne,você está louca, abaixe essa arma! – Suzanne em prantos, fala, entre as lágrimas e o muco escorrendo de seu nariz manchando o vestido de noite agora rasgado - Eu dei minha vida por você desde o colegial, entreguei minha juventude, meu futuro em suas mãos e você simplesmente me abandonou, sem nenhuma explicação convincente, saiu de casa naquela noite fria, com sua mala na mão e nem olhou pra trás, chorei cada dia de sua ausência, e agora que pensei que você estava disposto a retornar, você me abandona de novo, e vai sair do país? não George ,você não vai mais sair daqui! - George suava em bicas, sabia que aquilo ali não terminaria bem, tentava pensar em algo para distraí-la e desarmá-la, - Suzanne, abaixe essa arma vamos conversar como dois adultos de forma civilizada – ele falava com voz nervosa – De forma civilizada? Igual o dia que vi você arrumando as malas e me deixando sozinha e sem explicações? - ela respondeu – Com você não existe forma civilizada de conversa, já que você não vai ficar comigo, não tenho mais nada a perder, adeus George – e enquanto ela falava isso, baixou os olhos por um instante para limpar as lágrimas, George saltou de onde estava e agarrou a mão de Suzanne, e após alguns segundos de uma luta frenética, a arma dispara, Suzanne grita de dor, balbucia suas ultimas palavras nos braços de George – Eu só queria ter você perto de mim- e seu corpo cai já sem vida no colo de George, o tiro tinha acertado o peito de Suzanne e atravessado pelas costas, deixando uma linha de sangue através do vestido. George ainda se recobrando da luta, pega a arma coloca de volta no porta luvas, encosta o corpo de Suzanne na porta do carona, fica parado ali por uns dez minutos, abalado com tudo que ocorrera. Enquanto o sangue escorria pelo banco de couro do Buick, George vai até a casa de Suzanne abre a porta, vai até a geladeira, pega uma cerveja, toma um gole enquanto pensa no que fazer, de uma forma ou de outra estava livre de Suzanne, sentia alívio, por pior que isso parecesse, não sentia remorso, se sentia bem , incrivelmente bem. Foi até o carro, pegou o corpo de Suzanne, olhou na rua, estava deserta, o trouxe até a sala, deixou o corpo ali, tomou mais um gole de cerveja, colocou a garrafa vazia em cima da mesa de centro, ganhou a rua, entrou no carro negro, ligou e partiu em disparada para rodovia, no mesmo instante começou uma chuva torrencial, toda aquela água que caia, limpava as ultimas máculas de sua alma, ele iria simplesmente continuar seu plano de mudança, como se nada tivesse acontecido, teria vida nova, quando encontrarem o corpo ele já estaria do outro lado da fronteira.

Quatro horas depois, George estava agora no bar, com uma puta bêbada, tagarelando em seu ouvido, George termina seu café, toma mais uma aspirina, chama o garçom, pede a conta e fala - Sirva mais um desses para a senhorita. - Acende mais um cigarro, oferece outro a Darlene, o garçom chega com a conta e outro shot de whisky – Obrigado meu novo amigo. Gente esse é meu novo amigo!- ela disse entornando em um gole o whisky, enquanto George levantava, Darlene dava sinal de que ia perder a consciência e sua cabeça balançou vagarosamente e se acomodou na mesa, seu batom vermelho estava borrado pela baba que escorria de sua boca , o cigarro estava prestes a queimar seus dedos. George vai até o careca , coloca uma nota sobre o balcão, e diz para o garçom – Fique com o troco e cuide de sua amiga, ela bebeu demais por hoje. - Saiu do bar com os olhares o seguindo, a chuva continuava forte, mas ele estava agora bem desperto, entrou no carro negro, abriu o porta-luva, colocou sua arma la, ligou o carro, acelerou e saiu espalhando água das poças em todas direções. Pegou novamente a rodovia, viu uma placa: Fronteira a 400 quilômetros. Era melhor acelerar. Acendeu mais um cigarro, pensou que teria que vender o carro para alguém que não fizesse muitas perguntas, uma pena ele amava aquele carro, pisou fundo, queria velocidade, não tinha muito tempo.

A chuva caia pesada, George estava se sentindo cada vez mais leve.

O Buick voava baixo na rodovia deserta e o ronco do motor ia sendo encoberto pelo ruído da chuva.

Por Cleiner Micceno

Um comentário:

  1. Um conto com uma narrativa que prende a atenção e até cria uma expectativa no destino do personagem naquele bar, cujo clima você capta bem: uma puta decadente, um garçom rude, fregueses que parecem dispostos à violência. E o final fica em ab erto para o leitor. Um abraço.

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