quarta-feira, 25 de novembro de 2009
Névoa: um conto sobre a mortalha marinha
Uma névoa densa cobria todo o cais, eu estava parado no deck, o sol nem tinha aparecido no horizonte, havia acabado de acordar, uma ressaca monstruosa de gim e rum da noite anterior, minha cabeça continha um furacão pior que as tormentas dos dias de verão. O café tinha acabado de sair, amargo e fumegante, desceu pela minha garganta, me trazendo de volta a vida, acendi o cachimbo, um pouco de fumaça sempre faz bem, junto com o cheiro da maresia e dos peixes mortos que sobram na beira do porto, me sentia um lixo, prestes a ser levado pela maré e pelas vagas que batiam no porto, mas mesmo assim o dia logo ficaria claro e a névoa sumiria, eu teria que estar em mar alto, recebendo aquela luz diáfana mostrando o quanto eu estava morto, mesmo antes de deitar na tumba. O mar é um ótimo local para você estar, ele não julga, as máculas que permeiam a vida são todas lavadas pelas inúmeras tempestades, ficando apenas pequenas manchas indeléveis, que o faz conseguir conviver consigo mesmo. Sim, eu estava muito melancólico naquele dia, uma sensação de morte me corroia, mas tinha que sair, ir ao encontro das vagas e das ondas. Estava na hora de recolher os cordames, desatracar daquele porto barulhento onde a vida começava a me irritar, ouvia os gritos dos ajudantes, que chegavam e começavam a falar alto, com suas risadas e grasnados que se misturava ao marulho, se tornando uma sinfonia grave a meus ouvidos. Ergui o velame, e estava mais uma vez indo solitário para o mar, já me esqueci quantas vezes fiz isso durante a vida, depois de tantas mulheres e desencontros, acho que minha única grande amante foi a maré, que me transporta e me leva ao sabor dos ventos para dentro de seu seio acolhedor.
Já estava ao meio caminho de onde costumo jogar as redes quando o sol começou a despontar no horizonte, as águas azuis resplandeciam em mais um dia, que finalmente se fazia presente e mostrava o quanto eu era minúsculo, frente aquela força que estava imerso, só podia vislumbrar aquilo e pedir a benção por estar ali.
Lancei as redes e os anzóis de espera; hoje eu conseguiria ter mais alguns tragos à noite, quando voltasse para o cais do porto, iria ter com aquelas carrancas dos freqüentadores dos bares, com suas carnes queimadas pelo tempo e pelo mar, salgadas como o peixe que vendiam nas feiras nos finais de semana. Acendi o cachimbo para brindar o dia, esvaziei o que sobrou da garrafa de rum, e sentei na proa esperando o tempo certo de puxar as redes e os espinhéis. Nenhum barco a vista, só eu estava ali, esse era um lugar que poucos vinham, sempre iam onde as correntes se desdobravam a procura de cardumes, todos sem exceção, precisava de dinheiro extra, para suas famílias; em suas casas, sempre havia alguém para chorar suas mortes um dia quando suas vidas fosse tragadas pelo mar. Mas eu não tinha essas preocupações, simplesmente pescava para beber, para sobreviver, podia me dar ao luxo de ter dias menos proveitosos, sempre conseguia o necessário para as garrafas, as apostas e o fumo. Cochilei com o sol no rosto, acordei com a luz do dia alto no céu que me fez recordar que precisava me mexer e içar os peixes que estivessem em minhas linhas. Na popa do barco vi nuvens negras chegando pelo norte, um mau sinal, odiava as borrascas vindas do norte, pareciam presságios de desgraças, apressei minha corrida primeiro nos espinhéis, estirados pela lateral do barco com bóias a cada cinco metros, fui puxando lentamente, alguns peixes de tamanho médio, que dariam bom preço no mercado. Terminei de recolhê-los, já tinha ali uma boa soma, precisava agora recolher as redes, estavam mais longe, o vento estava me forçando a oeste, com muito esforço me encaminhei para direção delas, as nuvens já açoitavam minhas costas com sua presença agourenta. Recolhi as redes de par em par, içando para dentro do barco várias dúzias de peixes menores, foi um dia proveitoso, mas apenas queria estar longe dali, queria ir embora logo, estava com mau pressentimento, de repente as carrancas de terra firme se tornaram lembranças agradáveis. Uma lufada de vento começou a balançar o barco, a tempestade estava se aproximando, continuei o trabalho febril de recolher as redes que faltavam.
A ultima rede estava pesada, difícil de trazer a bordo, os músculos estavam retesados, a força nas linhas cortava os dedos, poderia ser uma grande sorte e ter pegado um dos grandes, isso faria eu ficar dias sem precisar vir ao mar de novo, tinha de me empenhar e trazê-lo para dentro, só havia peso, não tinha nenhuma luta debaixo das águas agora escuras, senti as primeiras gotas em meu corpo, geladas e afiadas, senti a frieza de seu toque, alguns raios começaram a brilhar no interior do negrume que se formou ao meu redor, a imagem das nuvens e da borrasca me causou medo, um temor que cala na alma, sentindo ser ninharia perante tão raivosa força da natureza; pensei em abandonar o peixe e as redes, seria um prejuízo menor que perder a vida em uma borrasca, mas meus braços e pernas não obedeciam mais, continuavam puxando, como se uma força os impedisse de parar. Continuava içando os últimos metros do emaranhado que trazia aquilo que estava oculto nas ondas, senti o frio selvagem da água da tempestade que se avolumava às minhas costas. Mais um tranco ele estaria dentro do convés, quando em um puxão, algo entrou no barco, algo soturno, não era um peixe, mas um sinal de morte; quando terminei de içar o redame, um braço, vestido em uma jaqueta puída de veludo, bateu no assoalho com força, e no meio das redes um corpo desfigurado pela água e pelas mordidas dos peixes, estava agora jogado em pleno convés, com o emaranhado da rede em torno de seu corpo carcomido, meu coração quase saltou pela boca, minha respiração estava difícil, seja pelo mau cheiro do corpo, pela borrasca que estava mais violenta jogando água em minha fronte pálida, um homem morto, estava ali, com seu sorriso descarnado, olhando para minha tez esbranquiçada. Paralisado, não consegui tirá-lo de la, jogá-lo de volta ao meio do oceano que palpitava com a chuva feroz que aumentava a cada instante. Levantei e entrei no meu gabinete, desnorteado, e do meio de coisas caídas, e a desordem do aposento, peguei uma garrafa de gim, precisava de um trago naquele momento, para esquentar os ossos e retomar a consciência. Abri a goela e despejei direto do gargalo, o mundo retomava o foco de novo, minhas roupas estavam ensopadas, o corpo começava a esquentar mas minha alma continuava gelada, pensando no corpo despejado do lado de fora ao sabor da tormenta,que assolava minha pequena embarcação.
Ele estava la deitado, estirado de bruços, com sua cara descarnada virada para minha frente, me observando, auscultando meus pensamentos, assombrando minha alma combalida.
Estirei-me próximo ao corpo com o balouçar do barco, a borrasca estava furiosa , arremessando tudo de um lado ao outro, menos o corpo que ali permanecia imóvel, como um totem, me lembrando da fragilidade da vida, tinha que devolvê-lo ao mar, me arrastei até a beirada, segurando nas bordas do barco, chegando aos pés do morto insepulto, agarrei as redes que o envolviam, puxei pelos pés, ele se recusava a se mexer, a tempestade tornou-se mais assustadora, os raios iluminavam a cena nefasta do morto que se recusava a voltar ao mar, levantei de um salto e peguei a parte de cima, perto dos ombros, e tentei içá-lo, meus dedos entraram nos restos de carne que se mostravam por entre sua jaqueta de veludo, o corpo se moveu, e em um rápido movimento eu vi no que restava da jaqueta de veludo, um monograma, E D. Não poderia ser, era impossível, já faziam muitos anos, mas era Edward Durrigan.
Em um clarão eu vi a face de Edward, ainda vivo, bêbado, com seu casaco de veludo, na mesa, onde eu tinha perdido tudo naquela noite, ele pegou todo o meu dinheiro e saiu fazendo troça... Naquela noite todos no bar me ridicularizaram, eu sai e fui atrás de Edward, ele estava cambaleando, indo em direção ao seu barco, rindo e cantando com sua voz de bêbado:- In Dublin's Fair City...Where the girls are so pretty ...I first set my eyes on sweet Molly Malone... Crying cockles and mussels alive, alive o! – Uma velha canção irlandesa, com seus soluços entremeando os versos.
O segui, ele parou em uma rua próxima ao cais, se encostou no muro para vomitar; era minha chance. Avancei pela pequena rua de pedras, encostei perto de onde estava, ia apenas tirar satisfação sobre suas atitudes, o peguei pela manga de sua jaqueta, ele se desvencilhou com violência e voltou-se para mim com sua cara marejada e suja, e falou com uma voz pastosa, - Seu vermezinho nojento, veio roubar um velho bêbado?- E tentou desferir um murro que não me acertou, desviei e ele continuou – Você não tem dignidade, Irvin MacLoud , igualzinho a seu pai... O velho MacLoud nunca teve dignidade nenhuma, sempre foi um covarde, um velho rufião como o filho agora o é... - Ouvi essas ultimas palavras com meus olhos marejados e com raiva inflada em meu peito, desferi um murro naqueles olhos vermelhos, e gritei –Lave sua boca para falar de meu pai seu velho bêbado!- O velho caiu, ouvi um estalo e uma batida seca, seu crânio bateu nas pedras da lateral da calçada, seu corpo se desmontou como um boneco de pano, ele estava morto.
Desesperado, tentando reanimá-lo, vi que seria inútil, o terror tomou conta de mim, peguei seu corpo inerte, e fui levando através da névoa da noite soturna, ouvi passos dos policias que faziam a ronda noturna, me escondi entre tralhas de pesca de um barco, que se chamava, Destino, lembro-me bem disso. Assim que os passos recuaram para longe, peguei o corpo do velho, levei até seu barco, coloquei o corpo sentado na proa, desatraquei e levei até alto mar, onde o deixei sentado entre o timão e uma bússola de mesa, peguei um bote depositei no mar, achei as chaves no bolso do casaco do morto, as chaves ele guardava sempre perto do coração, onde se via o monograma E D estampado. Abri a porta do porão, procurando qualquer coisa que pudesse utilizar para afundar o barco, achei um pequeno barril com pólvora negra, seria o bastante. Com um pedaço de pano, fiz o pavio que levaria aquele barco a pique, embebi em querosene, coloquei o rastilho na boca do barril, e acendi, corri para fora do barco me lancei ao mar que estava calmo com a lua despontando em meio à névoa, estava longe dos ouvidos de todos, só eu e minha vergonha estávamos presentes. Continuava nadando para o pequeno bote que estava a poucos metros, quando ouvi o estrondo, o casco teve um ferimento que foi o bastante para colocá-lo a pique, congelado pelo frio da alma pecadora e pela água gélida do oceano acusador. Observei os últimos instantes do velho Edward, o barco desceu horizontalmente até virar na vertical e começar a sumir, pela garganta do mar, que engole a todos que nele vivem. O corpo torcido virou-se para mim em um ultimo olhar antes de partir, os olhos vermelhos e opacos me observaram até os últimos segundos, quando ele foi cravado nas águas que o devoraram, um calafrio percorreu meu corpo, como se uma alma atormentada rodeasse meu corpo naquele instante. Fiquei ali paralisado por alguns minutos, como se velasse pela minha própria morte. Comecei a remar de volta a meu próprio barco.
Quando amanheceu ninguém deu falta de Edward, eu não consegui dormir aquela noite, e durante muitos meses depois do ocorrido, me recolhi em minha solidão desde então. Edward foi dado como desaparecido, mais uma vitima do mar. E meu tormento, com passar dos anos foi amenizado, mas nunca totalmente esquecido; ainda tinha pesadelos com os olhos vermelhos e mortiços dando sua ultima olhada para mim, os olhos rogando uma maldição sobre minha alma.
E agora, o corpo insepulto de Edward esta aqui reclamando meu espectro, com um sorriso de escárnio, cobrando minha vida infeliz, me atormentando por um mau passo, junto com a tempestade, cobrando seu preço - Oh alma inglória, que meu arrependimento e tortura cheguem aos ouvidos de Deus, perdoe-me, vá em paz com seus andrajos, eu fiquei vivo mas morri no dia que tirei sua vida, os seus restos ainda pairam sobre minha cabeça, em uma nuvem de chumbo que não consigo dispersar... Infecta todos meus sonhos e pensamentos, essa tortura de meu ser é o pior dos infernos que um homem pode enfrentar, vá em paz na profundeza do oceano escuro, arruma sua morada, esquece sua vida e segue em tua morte, pega essa moeda, que coloco em sua mão e entrega a Caronte, o fiel barqueiro te levará pelo vale das sombras... - Enquanto eu gritava as ondas batiam ferozmente na balaustrada do barco, a água feria minha fronte, que estava em prantos e as lágrimas se misturavam na imensidão do mar bravio e revolto.
- Segue teu caminho oh alma sem guia nem farol, volte as suas profundezas escuras, me deixa em paz com minha sina, deixe-me penar em paz, nesse abissal lodo que atola minha alma maculada pelo sangue... -Ergui o corpo pelos ombros, com a tempestade batendo de frente em meu corpo como estilhaços de vidro; virei os restos do velho na beirada do barco que balançava como um demônio indomado; o atirei no mar, a rede deslizou e se enroscou em uma parte da balaustrada, gritei em plenos pulmões no meio da água que se arremessava contra mim e durante os raios que caiam com raiva... – Alma maldita, saia de meu barco, vá para o coração da tempestade que te solidificou o corpo, liberte-me siga seu rumo! - Peguei uma faca que estava dentro de meu gabinete, fui até a rede cortando cada fio de sua trama que prendia aquele olhar oco que ainda me observava, cada fio da trama que era cortado o corpo escorregava um pouco mais; no ultimo dos nós que se soltava, olhei uma ultima vez no rosto descarnado, e as órbitas vazias por um instante ganharam olhos vermelhos e mortiços, que me observaram por alguns segundos, quando finalmente se soltaram as ultimas amarras o corpo foi dragado pelo turbilhão, levando aquilo que era seu de direito... Me ajoelhei no convés, estava desgastado, me sentindo apenas uma carcaça vazia, com as ondas batendo no barco, a tempestade levantava a proa e fazia o casco se chocar nas vagas que chicoteavam com força, levantei-me com muito esforço, entrei em meu gabinete, peguei uma garrafa de gim subi até o convés, ergui a garrafa ao alto e gritei – Esse brinde é por sua alma Edward! - Tomei um gole; o barco foi entrando no oceano, cada vez mais a deriva, a tempestade aumentava de forma dramática, as ondas subiam até o convés, o mar estava reclamando mais uma alma, peguei mais uma moeda, segurei em minha mão com força, eu estava a caminho do centro da tempestade, com mais um gole, ergui a garrafa e gritei – Caronte, fiel barqueiro, estarei contigo até a ultima tormenta ...- E o barco foi envolvido pela tempestade...
por Cleiner Micceno *
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