quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Decadência e restos humanos - Uma comédia do cotidiano



Estávamos eu e Constantin, ele havia chegado há pouco de viagem e insistiu depois de algumas  horas para que saíssemos para uma festa no apartamento de Camile, uma putinha da alta que adorava chamar uns basbaques da sua roda e uma fauna de artistas boêmios que viviam bêbados e reclamando da vida; um mais genial que o outro. Eu odiava esse tipo de gente tanto um quanto o outro grupo, mas Constantin estava eufórico, pois tinha transado com Camile no banheiro de uma boate suja uns tempos atrás e sempre achava que conseguiria de novo. Acho que essa era sua forma de vingança com esse tipo de gente idiota.


Bem fomos lá os dois, Constantin era do tipo magro, parecia um palito com braços, nariz adunco e olhos eternamente esbugalhados como se tivesse sempre levando sustos; usava um chapéu de aba curta, e um terno azul royal. Se estivéssemos em Jersey provavelmente ele seria confundido com um dos cafetões que rondam  as esquinas com seu cartel de putas baratas.

Eu estava sem saco para essas coisas . Coloquei a primeira coisa vi, um surrado blusão de couro que comprei na loja de penhores, que o dono jurava que pertenceu à um combatente da segunda guerra, mas acho que a etiqueta,  feito no México , descartava qualquer hipótese, mas isso não vem ao caso. Peguei a porra da jaqueta, uma camiseta surrada e minha faca de estimação, uma butterfly  que sempre andava comigo, afinal nunca se sabe até onde a idiotice alheia pode afetar seu tédio.

Pegamos o carro de Constantin, um Chevy 72 em péssimo estado, já vi latas de lixo mais apresentáveis. Descemos a toda velocidade, ou seja menos de 50 por hora pois o motor fazia muito barulho e muita fumaça, me sentia uma sardinha defumada. Chegamos ao apartamento de Camile que já tinha uma aglomeração de gente estranha na porta. Cruzei uma menina que não devia ter mais que 16, agarrada com um velho barbudo com pinta de ter muita grana, e do jeito que ele segurava a bunda dela provavelmente não era o avô preocupado que veio trazer a neta.

Subimos dois pares de escadas, uma merda, odeio subir escadas, devia ter ficado em casa, se quisesse fazer exercícios correria da policia.

Entramos na sala já acendi um cigarro, queria achar alguma coisa para beber antes de algum daqueles idiotas virem falar algo. Constantin foi para o canto da sala onde estava Camile, com uma roupa estranha daquelas todas rasgadas, mas que você consegue ver a etiqueta, era falso demais, aquilo tudo era como um grande balão de ar prestes a explodir.

Mirei em uma garrafa de whisky na outra ponta da sala, sai decidido a chegar lá sem olhar para os lados. Tive de interromper meu percurso por causa do babaca do Mickey, esse cara é insuportável. Com sua cara de vela derretida parou na minha frente e deu um grito que parecia que tinha visto o Papa.

- George há quanto tempo não te vejo?

- Olá Mickey, acho que não tanto quanto eu gostaria.

-George sempre  brincalhão, gostaria de te apresentar uma pessoa ... Betty venha cá quero te apresentar um grande amigo, ele é escritor...

Odeio essas apresentações, esses contatos sociais, cada vez mais prefiro a companhia de garrafas que de pessoas.

- Georgie essa é Betty – Disse  Mickey com um sorriso quase patético em sua cara de cera. – Nós vamos nos casar em breve e faço questão que você seja padrinho ...

- Claro Mickey, desde que você pare de me chamar de Georgie – Era o que me faltava, além de tudo ainda ser padrinho da burrice alheia. – Olá Betty como você aguenta esse cara? Á ponto de pensar em casar com ele... (Era sério isso, ela até que era bonita)

- Não te disse Betty que ele é um grande brincalhão, adoro esse cara. – Pena a reciproca não ser verdadeira, mas eu ainda estava muito sóbrio para falar isso então só pensei.

- Olá muito prazer George, Mik sempre fala muito de você. –Ela disse isso enquanto pegava em minhas mãos com delicadeza  e com seus olhos cheios de fogo olhando para os meus, que na hora acordaram. Bem a festa podia começar a ficar interessante.

- O prazer é meu, Betty.

- Mik me disse que você é escritor.

- Nada apenas rabisco algumas coisas, você sabe como o MIK é exagerado.

- Eu li algumas coisas suas e são bem mais que rabiscos. Eu também gosto de escrever, mas ainda não acho que sejam bons para mostrar para alguém... Mickey a interrompe no meio da frase e diz:

-Georgie você precisa ver os trabalhos de minha doce Betty, são maravilhosos, ela fica encabulada quando falo, mas te garanto cara é material de primeira, você bem que poderia dar uma conferida e mandar para seu editor ...

- Seria um prazer ver seu trabalho Betty – Os olhos dela não desgrudavam dos meus apesar de estar envergonhada com o falastrão do Mickey. E eu só pensava naquele corpo andando por meu quarto de forma bem pouco literária.

De repente Mickey gira o pescoço, viu mais alguém lá e começou a gritar e puxou Betty com ele, que me deu uma olhada desconsolada, Mickey era realmente um idiota...

Bem cheguei até a garrafa de whisky, parecia que estava me esperando, me acomodei ali perto do balcão, enchi um copo, e bebi em um gole, estava com sede, já enchi outro bem servido e entornei metade, completei  de novo pois não gosto de ver o copo meio vazio, dá azar assim como pessimismo.

Queria me tornar invisível e sair de lá ileso sem maiores aporrinhações. Vi Constantin passar com Camile depressa em direção ao banheiro, acho que os dois têm algum fetiche com vaso sanitário. Eu entornei o copo e enchi mais uma vez, pois vi que a noite seria longa, pelo menos o whisky era bom. Gente da alta pelo menos tem grana para comprar algo melhor que a gasolina que costumo beber.

Eu estava há quase uma hora ali no meu canto sem ser incomodado, até que sentaram-se do meu lado um casal de artistas daqueles cheios da magia da arte, que é de longe o tipo mais insuportável. Eu os conhecia há algum tempo, mas só de vista. Ela era filhinha de mamãe que se juntou com um desses poetas sujos de rua de nome tão interessante quanto sua obra, Boca de Veludo, que merda de nome.

- Hey George, vi seu conto na Black Pole, meu... Achei... Simplesmente... Demais cara. - Ele falava pausadamente, como se cada palavra valesse ouro e tivesse que ser dosada. Isso enquanto alisava aquela barba sebenta, como se nela repousasse uma grande sabedoria.

- Que bom, a policia não achou o mesmo...

- Você... É... Assim... Um cara demais. – Nossa como ele é um sujeito articulado eu imaginei.

Ai a matraca da ninfeta criada com leite maltado começou a falar, fazendo gestos exagerados com as mãos e seu vestido de tecido vaporoso florido subia mostrando as pernas.

- Nossa eu acho que artistas têm um dom divino, manja, conseguem essa iluminação de falar as coisas, acho isso tão incrível, o artista é um ser iluminado, tem uma alma sublime, blá, blá, blá... – Confesso que só consegui ouvir até ai, enquanto a deslumbrada falava, ela era até bonita, tinha umas coxas brancas à mostra, resolvi me concentrar mais nelas do que em suas palavras.

Eu apenas acenava com a cabeça enquanto ela continuava, aproveitei e enchi mais uma vez meu copo, eu estava realmente com sede.

- Você também não acha isso, que os artistas são almas elevadas? Que conseguem transpor as barreiras com seu dom divino...

- Eu não sei, acho que uma garrafa traz inspiração, minha musa é uma garrafa cheia. Essa coisa de artista divino é besteira, não passam todos de farsantes, essa coisa de sair polinizando o mundo com sua sensibilidade é uma idiotice. Um bando de fadinhas de um faz de conta, quero mais que se fodam com toda essa frescura. Levar-se  a sério é uma grande bobagem. Desculpem se vocês dois polinizam o mundo, mas eu vou pisar em todas essas flores coloridas que vocês fazem brotar de suas respectivas bundas... Levantei em direção ao banheiro entre os olhares de gatos assustados dos dois. Ainda estava muito irritado, esse tipo de gente azeda um pouco mais meu humor. Então disparei uma frase de efeito, enquanto completava meu copo, que não sei por que já estava vazio de novo.

- O mundo é uma grande bola de merda.

E lá fui eu em direção a porcaria do banheiro, cambaleando depois de minha conversa com meus dois novos amigos do peito.

Cheguei e a porta estava fechada, abri de uma vez, lá estava a bunda branca de Constantin subindo e descendo com a Camile por baixo. Passei pelos dois eles nem notaram minha presença. Fui até o vaso mijei com raiva daquela merda de festa, passei de volta e gritei para Constantin :

- Seu filho da puta egoísta, enquanto você fode essa vaca eu tenho que aguentar esse bando de idiotas, eu vou embora! Depois nos falamos...

Sai com raiva batendo a porta o desgraçado nem parou o vai e vem.

Fui abrindo caminho no meio da multidão, agora começavam aparecer os cachorros de rua, aquele tipos ensebados que farejam uma festa, que não conhecem ninguém, mas se infiltram. Tinha algumas putas, uns viciados, só gente de fino trato. Eu peguei o que restou da garrafa de whisky , coloquei debaixo do blusão de couro da segunda guerra do México e trilhei minha própria trincheira para fora daquela merda. Cada dia odiava mais as pessoas e o convívio delas, eu acho que estou ficando maluco, antissocial, sei lá o que mais. Só sei que ali não queria mais ficar, era uma chateação que eu podia ter me poupado. Devia ter pegado a chave da lata velha do Constantin, mas provavelmente eu morreria sufocado com a fumaça.

Já estava descendo as escadas, pronto para uma caminhada de vários quilômetros até minha casa, quando ouço uma voz de mulher me chamando:

- George ... George...

Era Betty, estava sozinha descendo rápido atrás de mim. A noite como mágica se tornou mais interessante de novo.

- Olá pequena, desculpe sair sem me despedir, é que já não aguentava mais essa festa...

-Tudo bem eu também não... Quer ir em casa ver meus textos ?- Ela disse com um olhar muito doce.

- Hhumm não é má ideia, mas sendo sincero não aguento mais a cara do Mickey...  – Respondi de forma meio sacana.

- Nem eu, saí da festa e nem dei satisfação. Ele está dormindo em um sofá, depois de ter tomado duas doses, ele é fraco demais para bebida e se torna um imbecil... Realmente não quero carregar aquele peso morto embora... E então vamos?

- Se uma dama me pede com tanta delicadeza seria grosseiro de minha parte não ir,
não acha?

- Com certeza eu veria isso como falta de cavalheirismo.

- Então eu vou, mas estou sem carro, sabe como é, vim de carona...

- Sem problemas vamos no carro do Mickey , eu estou com as chaves , ele não vai se importar mesmo.

-Ok as damas primeiro.

Até que enfim o Mickey serviu para alguma coisa na vida dele. Talvez depois dessa noite eu aceitasse ser seu padrinho...

por Cleiner Micceno

Decadência e restos humanos - Uma comédia do cotidiano

Decadência e restos humanos - Uma comédia do cotidiano

sábado, 6 de novembro de 2010

Réquiem

Réquiem

Réquiem - um curta de Cleiner Micceno




Curta metragem desenvolvido com o grupo de cinema e vídeo de Laranjal Paulista, em uma oficina de Cleiner Micceno, pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, através da Oficina Cultural Grande Otelo de Sorocaba.
O curta é uma jornada pela alma conturbada de um escritor em crise, onde referências a varios filmes assim como simbolos são empregados em um turbilhão, onde unem-se sons e imagens com a declamação do poema “Réquiem” de Cleiner Micceno, cada som e é parte intrínseca de um processo de deterioração da personagem vivido por Chico Cardoso, que tem uma visita do Tempo-Morte- Deterioração personificada por Filipe Sanches, em um rápido flash de lucidez.
Papéis em branco, palavras soltas e o passar do tempo e da vida são a principal ordem expressa no conjunto de toda obra.
O elenco conta com os atores
Chico Cardoso – escritor
Filipe Sanches – tempo morte e deterioração.
Cleiner Micceno - Narração
Dirigido, escrito e editado por:
Cleiner Micceno
Equipe de Produção:
Jessica Aparecida de Oliveira Campos
Marcelo de Oliveira Campos
Felipe R. Lopes
Ednalva de Oliveira Campos
Aparecido de Oliveira Campos
Lucas Aidan Monteiro
Jeferson José de Moraes Camargo
Mariana Lacerda
Pamela Tais
Gabriela Sousa da Silva
Paulo H. dos Santos
Débora
Emanoel
contando com apoio de:
Rafael Barbosa Jatobá
Marcelo Luis Luvisotto
durante o processo
Agradecimentos especiais:
Secretaria de cultura de Laranjal Paulista, em nome de Maria Silvana Pires
E também a Emanoel Móveis e Antiguidades da cidade de Laranjal Paulista , por ter cedido materiais de cena, o tempo e simpatia para com todos, assim como a máquina de escrever que foi imolada na pira da arte. Sem eles esse vídeo não teria sido concretizado.
mambo produções outubro 2010
cleiner.mambo@gmail.com