sexta-feira, 25 de março de 2011

pratos quebrados e corações partidos



Saia da minha casa! Julia disse gritando, um grito agudo como uma doninha encurralada guinchando.

- Ainda é cedo. Afirmei de modo lacônico como a ocasião pedia, mas nem tudo que falamos chega ao interlocutor da mesma forma que imaginamos. Então ela agilmente arremessa um prato em minha direção com a agilidade de um ninja daqueles filmes ruins de sessão da tarde, mas, por sorte ela não tem a mira deles e o prato passou zunindo pela minha cabeça e se chocou na parede da sala.

- Porra! Esse prato é a mais pura louça da china! Sei lá, acho que um dia isso queria dizer alguma coisa, mas não atualmente pelo que notei.
- Tem muitos mais de onde veio esse se você quer saber, minha mãe pegou uma promoção na loja de 2 reais!

- 1 e 99! Bradei como um pastor da igreja universal.
E a ninja do apartamento 22 recomeçou o ataque, ela arremessava cada vez com mais rapidez e para minha alegria, com pior pontaria.
- Mas meu docinho... Pulei para trás do sofá enquanto argumentava.
- Meu docinho a puta que o pariu! E ela arremessou com mais raiva ainda.
Com os pratos ribombando próximos de mim eu só imaginava quanto a mãe dela tinha de grana no dia que comprou os pratos, não é possível, não acabavam mais.
- Meu amor, vamos conversar como duas pessoas civilizadas! Gritei de minha trincheira atrás do sofá.
-Meu amor o cacete, vai falar isso para aquela vagabunda...
Ai eu me irritei. – Vagabunda não, ela é muito religiosa! Gritei isso e corri para meu abrigo anti-pratos.
- Ah claro santinha do pau oco, do pau e do oco pelo jeito! Achei isso uma coisa espirituosa. Vou usar algum dia.
- Mas você está tirando conclusões precipitadas... Disse no melhor tom que consegui encontrar. Os pratos pararam por alguns segundos, ela havia dado uma pausa, ou porque estava refletindo sobre o que eu disse, ou havia acabado finalmente a munição comprada pela sogra. Resolvi olhar de forma bem cuidadosa por cima de meu bunker. Coloquei os olhos por cima do sofá e vi uma caneca voar quase do meu lado. Droga agora começou a munição reserva.


Ela estava gritando alguma coisa impronunciável e entre um guincho e um arremesso e outro ela falava:
- Sa...fa...do , conclusão... precipitada ... filho da... puuuuuuttaaaaaaaa...
Entre esse lindo dialogo ouço alguém bater na porta de forma bem pouco educada e berrar.
- Polícia abra essa porta... Ou vamos arrombar...
Eu levantei com cautela. Ela estava na cozinha, provavelmente procurando mais presentes da mãe, para me jogar. E numa demonstração de agilidade Shaolin... Sim eu sei, tenho de parar de ver filmes ruins... Me adiantei e abri a porta arrumando os cabelos e tentando fazer a melhor cara possível.
- Boa tarde Seu guarda, o que podemos ajudá-lo?
Ele não foi muito gentil, abriu a porta num safanão e entrou com mais dois gorilas fardados.

- Ouviram gritos e muito barulho aqui no seu apartamento e nos chamaram para atender a ocorrência. O que esta acontecendo aqui?
Enquanto o policial falava ele analisava a situação da sala de guerra, era difícil dar uma desculpa decente.
- Estávamos treinando para o casamento judeu de um amigo nosso... Vocês sabem né sempre se quebram pratos em casamento judeu...


- É casamento grego que se quebra prato. Falou um dos gorilas.
- Como você sabe disso cabo? Perguntou o policial que me interrogou antes, ele devia ser o chefe da matilha.
- É que eu já fiz bico de segurança em um casamento grego. Falou meio sem jeito de forma meio envergonhada.
- E o judeu você quebra um copo, alguém pisa em um. Retorquiu o outro gorila que estava com arma em punho.
- E você como sabe disso? De novo o chefe.
- Ah trabalho de garçom em bufê nos dias de folga, sabe como é né, o soldo não é grande coisa né sargento.
- Que maravilha e nunca me convidam para essas coisas, vocês sabem que eu gosto de comidas exóticas...
Nisso a ninja do apartamento 22 sai aos prantos da cozinha e entra na sala correndo e chorando. Os policiais apontam as armas para ela, que para de supetão. Ela parara de chorar e com muita calma, já com as mãos erguidas no susto, começa argumentar polidamente com os policiais com a voz mais doce do mundo. Uma pequena pausa aqui, como uma mulher consegue acelerar de 0 a 300 em segundos e depois para 0 de novo como se fosse a coisa mais simples do mundo. Acho impressionante isso. Bem voltemos ao que interessa.

- Por favor policiais, desculpem terem perdido seu tempo, nós só estávamos tendo uma discussãozinha aqui...
- Por causa do casamento grego? Perguntou o cabo.
Ai ela caiu em prantos de novo.
- Que casamento grego que nada, esse filho da... mãe aí... peguei ele acariciando a filha da faxineira quando cheguei em casa...ela estava toda assanhada... se contorcendo enquanto ele estava com as mãos nas costas dela...
- Isso procede cidadão? Perguntou o sargento para mim com cara de desaprovação. Pô justo agora que já achava que tínhamos ficado amigos ele me chama de cidadão.
- Não foi bem assim capitão. Sempre bom aumentar divisas nessas horas. – Sabe como é, ela nem deixou explicar... A menina coitada saiu daqui correndo debaixo de tapa e nem tivemos tempo de nos explicar...
- Bom agora é uma boa hora... Disse o sargento ele deve ter gostado do capitão.
- Bem a pobrezinha tinha se enroscado nos enfeites pendurados, enquanto limpava a estante... E eu fui apenas ajudá-la, sabe como é né... Sou um cavalheiro.
- Você é um mentiroso! Gritou a ninja.
Pelo menos os ninjas da sessão da tarde são silenciosos.
- Claro que não meu doce de coco, é que você viu de um ângulo que não fazia jus a realidade e você se precipitou.
Ela estava emburrada e com cara bem pouco amigável. E a cumplicidade masculina, que é um dom divino, uma coisa como as leis da natureza, tão inerente a sobrevivência da espécie desde seus tempos imemoriais, veio em meu socorro.
- Bem então vamos fazer a reconstituição do suposto crime e tirar a prova disso já ...
- Como assim? Ela perguntou estupefata.
- Simples vamos reconstituir a cena e daremos o veredito, se ele está falando a verdade ou não. O sargento disse isso e olhou magnânimo com o rei Salomão.


- Soldado Tavares vá lá, você vai ser a filha da empregada...
- Pô justo eu sargento? E foi resmungando perto da estante.
- Vá lá você... Apontando para mim. – Fique onde você estava e coloque o soldado Tavares no lugar que a menina se enroscou... E a senhora ai vai lá para a porta, vamos organizar isso.
E lá fomos todos nós para os lugares, sendo dirigidos pelo Spielberg da Vila Mariana.
- Todos à postos?
-Sim. Gritamos em uníssono.
- Então... Ação! Ele tava levando isso bem a sério, me senti até o Tom Cruise.
O soldado Tavares tinha se enroscado em alguma coisa da estante para dar veracidade ao personagem e eu fui lá desenrosca-lo. Mas não acho que fiz bem o papel, faltava estímulo, sei lá, a filha da empregada era mais inspiradora. Bem me empenhei o melhor possível com o enredo e com o elenco presente, mas, acho que não ganharia um Oscar, acho que nem um Kikito. Pelo menos fui convincente, o diretor também não era muito exigente. A Julia, ou melhor, a ninja, viu de novo a cena e notou que a montagem era bem parecida com a original que ela presenciara meia hora antes e teve que capitular, e confessar que ela poderia estar enganada.
- É policial, acho que me precipitei mesmo... Confesso que realmente acho que exagerei...
- Sim senhora, mas é nossa função também tentar resolver as coisas da melhor forma possível, nem só de prender pessoas a gente vive.
- Tudo bem, agradeço ao senhor, eu ofereceria um café para compensar tudo que fez pela gente, mas acho que não tenho mais xícaras...
- Ah não temos luxo não pode ser em copo mesmo... Disse o soldado Tavares ainda se desvencilhando da estante, derrubando uns badulaques que foram presentes da mãe de Julia. Pensando nisso agora, será que essa velha só compra essas promoções?


Bem depois de uns dez minutos e um cafezinho em copos de plástico e uma caneca do Mickey que havia sobrado. Fui acompanhar os valorosos policiais até a porta, só ouvi o sargento falando no caminho para o elevador:
- Porra Tavares você tem que me avisar quando tiver mais desses casamentos gregos, pode me chamar para uns troianos também, não ligo não...
Fechei a porta e fui ajudar Julia a recolher os cacos no chão, ela estava bastante triste. Ela olhou para mim e veio pedir desculpas, me deu um abraço forte e eu falei:
- Calma docinho, está tudo bem, você não precisa ser tão impulsiva, tem que se controlar mais só isso.
- Eu sei, eu sei, você desculpa esse meu gênio terrível?
- Claro que sim, agora está tudo bem. Enquanto dizia isso eu estava imaginando onde seria a loja que a mãe de Julia achou a promoção de pratos, to meio sem grana e os pratos são resistentes... E também preciso ligar para a filha da empregada e marcar de ver a tatuagem que vai das costas até o meio das coxas, que ela ia me mostrar bem naquela hora que Julia chegou, afinal fiquei curioso.


Escrito por Cleiner Micceno

quinta-feira, 17 de março de 2011

Irritação, aspirinas e escadarias

escada Dia maldito. Pensei comigo. Já estava subindo o terceiro lance de escadas. O prédio estava, mais uma vez essa semana, sem energia elétrica. Pelo menos moro no quarto andar. Pior é seu Zico que mora no décimo quarto, acabei de vê-lo na padaria com três sacolas. Pensar nisso me alegra um pouco, me ajuda a subir. Um sorriso maroto escapa de minha boca imaginando o velho tendo de subir tudo isso todo ferrado.

Sei que isso parece errado, ainda mais com toda essa baboseira de politicamente correto por ai , mas foda-se, meu único momento de triunfo essa semana é saber que consegui ser melhor que um velho de sessenta e sete anos e ninguém tira isso de mim. Já estava quase morrendo na escada quando cheguei a porta que dá acesso ao meu andar,  ai passa o velho Zico, atrás de mim com todo vigor e ainda me cumprimenta alegre:

- Olá vizinho, um pouco de exercício sempre é bom né? E sobe cantarolando uma música dessas que são horrendas mas que grudam na cabeça. Eu fiquei lá, pasmo , esgotado e ouvindo o filho de uma boa puta subindo cantando algo como “o movimento é sexy, o movimento é sexy...”

- Desgraçado, você pelo menos podia ter um bom gosto musical! Lógico que não gritei, mas resmunguei isso enquanto abria a porra da porta. Abri meu apartamento ainda remoendo a situação. Meu apartamento parece que foi acometido por um furacão, e esse era para ser meu pódio depois de minha subida do Everest de quatro andares, mas o Zico tirou esse gosto de vitória de minha boca.

Fui para o banheiro tomar um merecido banho. Abri a torneira e fui bombardeado por agua gelada. - Maldito seja! Esqueci dessa merda sem força! Tomei um banho frio a contragosto, e cantarolando “o movimento é sexy, o movimento é sexy...” que porra essa merda gruda na cabeça vontade de jogar o Zico e suas cantorias pela janela do décimo quarto.

Terminei o banho e a maldita cantoria. Uns cinco minutos depois a luz voltou. Eu me peguei xingando a luminária. Ela não ligou.
Clara viria aqui hoje para conversarmos, eu já estava todo animado, pois a gente não tinha transado ainda e hoje acho que seria o dia do abate. Que horrível falar assim, acho que vou usar termos mais poéticos para me referir a Clara que é uma mulher mais fina, vamos fazer amor, acho que fica mais bonito e mais romântico.

Preparei tudo, vinho no gelo, velas, parece romântico, mas as velas comprei por causa das constantes faltas de luz elétrica. Fiz um ensopado à moda espanhola que é minha especialidade, comprada na esquina, logicamente feita por alguém que sabe cozinhar que não é meu caso. Preparei tudo arrumei a casa do jeito que deu, tava tudo mais ou menos certo. Clara chegou, deslumbrante em um vestido hippie de butique, parecia até um lindo abajur que vi na rua outro dia.



Ela estava meio inquieta, pedi para ela se sentar na mesa à luz de velas e com as taças prontas para serem enchidas. Ela disse que queria falar algo importante, eu retruquei que devíamos comer antes e falaríamos durante o jantar. A verdade era uma só, pra falar a verdade duas, uma que eu tava morrendo de fome e a outra que eu queria que ela bebesse logo para “fazermos amor”. Clara entre uma garfada do ensopado e um gole do vinho me disse que tava tudo terminado: - Po, tá bom esse ensopado hein, ah acho que não rola de ficarmos mais juntos, era isso que queria te dizer, sei lá perdi a vontade.

Quase perguntei se ela queria mais vinho com ou sem arsênico. Eu fiz cara de paisagem, tentando fazer a pose mais blasée possível, queria mostrar que também era um cara moderno, adulto, que lida bem com essas coisas. Mas no fundo tava era puto da cara, imaginando: - Fazer amor o caralho, fina só se for lá na cadeia, porque ela sozinha devorou quase todo ensopado. Eu perdi a fome para ser sincero.

Eu tinha ficado semimudo enquanto ela tagarelava horrores. Ela olhou para o relógio viu a hora e falou:

- bem vou nessa nos vemos por ai, valeu pelo rango depois precisa me passar a receita! Se levantou da mesa tacou um palito de dente na boca e saiu. Eu fiquei lá parado olhando a cena, devia ter falado pelo menos que a receita é do cara do barzinho da esquina, eu devia ter falado tudo que achava daquela situação, mas fiquei quieto e lavei os pratos.

Depois de lavar os pratos fui tomar um gole do vinho afinal eu tinha desistido de beber antes. A campainha toca, eu imaginei: - Será que ela resolveu voltar e “fazer amor”? Ledo engano era só o Constantin que tava de passagem.
- E ai George, tava sem nada para fazer mesmo, resolvi dar uma passada ver se você tem uma birita ai, ou algo assim.

Filho da puta, veio filar um rango! mas só imaginei

- Tudo bem Constantin, a Clara acabou de me dar um fora, ia mesmo beber...

- Porra cara que merda hein, o que você tem ai para comer?

Quanta preocupação com minha pessoa né seu filho da puta – imaginei mais uma vez.

- Tem um pouco de ensopado do bar do seu zé ali, ou pelo menos o que restou dele depois da passagem da clara pelas panelas.

- Porra, só tem uma Merreca, posso pegar uns biscoitos e um pão ali para dar uma aumentada no rango?

Porque você não leva também meu dinheiro? Imaginei de novo.

- Pode e para de me encher quero tomar um porre.

- Po legal, posso acompanha-lo ? Também to a fim de tomar um porre.

Claro, sou eu que to pagando né desgraçado! – imaginei pela quarta vez.

- Tudo bem, to ali na sala quando terminar ok? Enchi um copo de vinho com o que sobrou da garrafa, entornei com tudo, mas não tinha sobrado muita coisa, a Clara parecia um enxame de gafanhotos. Fui até ao armário e peguei a única coisa bebível que tinha lá, uma garrafa de uísque Green Valley, era terrível. Já tomei uns analgésicos junto para me prevenir da dor de cabeça. Ou seja meu dia ainda estava uma merda.
Constantin tava comendo diretamente na panela, já se serviu de uma dose de Green Valley e disse.

- Porra que merda hein? Veneno puro! Falou isso e se serviu de mais uma dose.

Reclamei da vida com Constantin, que pelo menos serve para isso, ele não fala quase nada que preste, mas pelo menos presta atenção. Ai ele foi embora lá pelas três da manhã, de porre. Pelo menos o Green Valley propicia isso.

Fui dormir. Nem o porre e nem os analgésicos tinham ajudado, pois a dor de cabeça começou a se avizinhar e eu não conseguia dormir. Enquanto estava deitado rolando na cama comecei : - “O movimento é sexy, o movimento é sexy...”

- Cacete!  Zico filho da puta.
Escrito por Cleiner Micceno ( dedicado ao grande amigo Rick Pacheco)