segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Um conto de natal


Ele nunca tinha gostado de natal, isso remetia á época que era criança, ele e seu pai, sempre tiveram uma vida ruim, com muitas dividas e nenhum dinheiro. Alcoólatra inveterado, o pai, tinha muitos outros vícios alem do álcool , e um deles era jogatina. Sua maior lembrança de uma noite natalina, era a de seu pai chegando bêbado e nu em casa escoltado pela polícia; ele tinha , em uma única rodada, conseguido perder de uma vez, todo salário do mês e as respectivas bonificações de natal, assim como suas roupas, seu carro velho e logicamente tudo que restava de sua dignidade. Chegou em casa tiritando de frio e ressaca, com as mãos algemadas e um lençol, que envolvia seu corpo mirrado, seus olhos roxos e seus pés machucados de ter andado pelas ruas sujas da capital descalço. A mãe de Bert havia partido nessa época, mesmo ela sendo uma pessoa paciente e compreensiva, não conseguia mais agüentar os murros, os palavrões e a vida miserável que levava com o marido beberrão. Ela simplesmente pegou as poucas roupas e alguns objetos de família que ainda sobraram, objetos esses, que o pai não havia dilapidado, por ela os guardar em um buraco debaixo da cama. Ela saiu porta a fora deixando Bert, com 12 anos, que ficou para trás dormindo em seu colchão. Ela saiu sem acordá-lo, e quando ele ouviu a porta bater, despertou assustado e correu até a rua, onde viu sua mãe ir rua a baixo, entrar em um carro e sumir no horizonte gélido e cinzento da cidade, sem olhar para trás. Sentiu o choro bater á porta dos olhos, já rasos d’água, mas segurou-se firme, sua mãe deveria voltar para buscá-lo, foi o que ele havia imaginado enquanto o carro sumia na imensidão das ruas negras.


Bert se tornou um adulto muito cedo, não tendo muitas lembranças de brincadeiras e coisas infantis, mas apenas da responsabilidade de pedinchar nas ruas, que cabia a ele, que tinha uma saúde muito frágil, devido aos maus tratos e vida desregrada das ruas para ter algum dinheiro para comer.

Sabia que seu pai chegaria do trabalho que havia conseguido a alguns dias de porteiro de uma espelunca, do qual logo seria chutado, como sempre ocorria, assim que começasse a arrumar problemas por causa de suas bebedeiras constantes. E quando chegasse, bêbado e sem dinheiro, descontaria nele, uma coisa corriqueira.

Teve de aprender a ser forte para poder proteger a mãe da fúria do velho. Por sua cabeça passava um turbilhão de idéias , inclusive de ir atrás de sua mãe e trazê-la de volta ou sumir no mundo de vez, afinal seu pai não era exatamente um exemplo de pessoa de bem, mas ele nem imaginava onde a mãe estava, ou com quem ela havia fugido, apenas se resignou em sua vida medíocre e miserável.

o velho estava doente e abatido, e provavelmente logo pereceria, afogado em alguma garrafa ou poça de vômito. O Pai era o que sobrara de sua família, e ele se sentia obrigado a ficar com o velhote, até sua mãe aparecer de volta e levá-lo dali.

Ia à igreja todos os fins de semana, para poder conseguir alguma comida, com a única condição que ouvisse os ensinamentos do padre, que sempre dizia coisas como: – Honrarás pai e mãe. A família é nosso bem mais sagrado, mesmo nas dificuldades, devemos manter sempre a retidão e o amor aos pais e a família... – Essas palavras do pároco pareciam uma piada de mau gosto, principalmente quando ele era surrado com um pedaço de madeira que seu pai deixava atrás da cama quando ele voltava sem dinheiro, principalmente quando ele estava desempregado sem ter possibilidades de beber. Mas, mesmo estando mais maduro do que se esperaria em sua idade, muitas coisas soavam a seus ouvidos como verdades absolutas, que sua dor daria redenção no além túmulo, que ele teria que, por fim, cuidar do pai. Saia às ruas , perambulando, para conseguir algo para comer, se sentiu ainda mais solitário, as pessoas pareciam mais assustadoras que antes, ele se sentia um cão à procura de uma lata para remexer, iria passar mais uma noite entre as marquises e os becos enfurnados na escuridão, em contraste com as ruas cheias de luzes, não queria voltar para casa, não precisava de mais surras, mas sempre acabava voltando e aceitando suas punições.

Em um dia de agosto, viu seu pai deitado na cozinha com um litro de gim nas mãos estava desacordado, assim que ele adentrou o pequeno aposento, escuro e sujo viu seu pai começar a despertar, e em vez de violência, ele começou a chorar como um bebê e abraçou o filho e disse: - Sua mãe nos deixou sozinhos para apodrecer aqui filho, e desde que ela se foi, é o que estamos fazendo, sente-se aqui e beba com seu pai, vai aliviar nossas dores. - Essa foi uma das maiores lembranças de sua juventude, o primeiro trago com o pai, que naquele momento, mostrou um lampejo de humanidade, pela primeira vez se sentiu próximo à aquele que era seu algoz. O gim desceu quente em sua garganta, entorpeceu seu corpo, o pai acendeu um cigarro mofado, soltou umas tragadas e compartilhou daquela garrafa com o filho pelas horas seguintes, naquela noite fria, Bert, se sentiu confortável, com menos dores em seu corpo pequeno e esquálido. E os devaneios com sua mãe em campos verdejantes vieram aos seus sonhos e ele sentiu-se bem.


30 anos depois ele estava estático, frente a uma garrafa de gim, igual aquela que ele e seu pai beberam naquela noite de agosto, e ali ele entendeu seu pai, e como amigo de copo eles se entenderam com o passar dos anos o amor paternal residia em uma garrafa. Os anos ao lado do pai foram difíceis, sua mãe nunca mais voltou a vê-lo; ficou sabendo uns anos depois, que ela estivera dançando em uma boate no subúrbio e havia morrido de tuberculose em um porão que dividia com algumas putas casuais.

Os anos passaram, seu pai veio a falecer em um outono qualquer, sem glórias nem honra, apenas um par de bêbados e ele aos pés da tumba, bebendo a sua saúde. Sempre se sentira muito sozinho, mas naquele dia sua solidão se tornara amarga. Saiu pelo mundo com sua solidão, seus pensamentos e sua falta de perspectiva.

Mas a herança paterna do vício pela bebida tinha frutificado em sua personalidade, Bert tinha conseguido varias prisões por bebedeira e desordem e inúmeras internações em instituições que o faziam ficar ocupado o dia todo, recortando coisas como uma criança imbecil, e o entupindo de remédios em buracos solitários, quando ele se comportava mal. Tinha se cansado da vida no fio da navalha, queria se emendar, arrumar uma boa mulher, ter uma vida estável ou algo assim, quem sabe um filho, uma casa no subúrbio e simplesmente ter paz, e acalmar os demônios internos que o chamuscavam todos os dias, com suas línguas de labaredas ferventes que queimavam seu corpo.


Já estava sóbrio há três meses, estava prestes a entrar em seu novo emprego, a garrafa de gim brilhava em sua frente, mas ele não podia abrir, tinha que ser resistente só dessa vez, para se redimir consigo mesmo. Era quase natal, faltavam poucos dias para a festa, talvez essa fosse a primeira vez que conseguiria festejar a data sem nenhum problema, sem nenhum fiasco ou decepção.

Tinha conseguido um emprego de final de ano muito bom com boa grana, ele seria o Papai Noel , vestiria a barba, usaria um pouco de enchimento, já que ele conseguira engordar uns 10 quilos nos últimos meses, a garrafa de gim estava lá, intocada, desde o dia que ele a comprara, como uma arvore de frutos proibidos; naquele minuto se sentia Adão domando a serpente iconoclasta, que o chamava e tentava ludibriá-lo com um gole apenas, mas um gole apenas, o faria perder o paraíso, e ele não queria pagar esse preço.

Foi para o quarto vestiu as botas, o cinto preto a barba falsa, o enchimento. Estava perfeito, iria no bairro rico da cidade, distribuir balas e doces, fora contratado por uma agência de gente rica, que prestava serviços de recreação para grandes empresas.

O primeiro bairro foi um choque para Bret, as luzes cintilavam na frente das casas, construídas de forma sólida e altiva, ele sentiu sua insignificância naquele mundo cão do qual viera, em cada quadra que passava, crianças bem nutridas e bem formadas, estavam por toda parte, na inocência tola de todas elas, chegavam com suas ladainhas de presentes caros, viagens e coisas fúteis, ele apenas tinha de sorrir e falar que traria tudo se eles fossem boas crianças. Alguns eram agressivos, ameaçavam o pobre Bret, que estava fantasiado de papai Noel e tinha que responder sempre com sorrisos gélidos, como a neve falsa que era colocada em frente de algumas casas, eles seriam os futuros patrões de alguns Brets desvalidos como ele, e viu a insignificância de tudo aquilo, e como se lembrava de sua infância, sem presentes nem desejos, apenas raiva e vergonha, nas vitrines coloridas que estavam tão distantes de sua realidade, dos pés descalços chafurdando na lama pútrida do subúrbio onde morava, em contraste com aqueles pestinhas mimados, qual era o significado daquilo? Não sabia responder. Nunca fora político, nunca tinha encarado suas próprias insignificâncias, sua vida azarada e disforme, longe daquele tecido social cheio de brilho, ele se sentia um lixo humano, a garrafa de gim brilhava em sua cabeça, ele só pensava em como seria bom ter um gole para poder afastara realidade sombria daquele momento, pensava nas palavras ridículas do padre de sua juventude, que devia comer frangos assados e tortas de maçã, e depois arrotava as vicissitudes da pobreza e da fome, isso era uma boa hipocrisia.


Finalmente ele pode ir embora no final da tarde, já tinha agüentado muitos desaforos por um dia, mas tinha que pensar que, talvez, esse seria o primeiro passo para ser alguém socialmente aceitável, talvez tivesse que passar por essa provação, para se tornar mais forte. Pensando dessa forma idílica , foi para casa onde encontrou a garrafa ainda intacta naquela noite fria, resistiu, foi mais a fundo em seus pensamentos deitado na cama revirando-se dos lados sem conseguir dormir.

No outro dia mais uma maratona, mais sorrisos metálicos, mais sons de algazarra, mais crianças mimadas e bonitas, ele estava cada vez mais depressivo, só conseguia pensar no horário de ir embora, era como desancorar de um rio infernal e as tormentas o levarem para o centro de seus demônios, das bestas que habitavam seu ser, refletia cada minuto nas desigualdades da vida, como pessoas vivem tão felizes em suas casas, enquanto alguns perambulam sem rumo pelas ruas, com o único companheiro sendo uma garrafa de álcool, que atenuava a dor e esquentava a alma combalida e gélida daqueles que já perderam qualquer esperança.

A semana foi seguindo e o natal estava próximo, a garrafa de gim ainda estava la, pousada sobre a mesa da cozinha, o rotulo já estava derretendo de tantas vezes que fora manuseada sem ser aberta, os espíritos que viviam dentro dela o chamavam pelo nome, às vezes ele via a cara de seu pai afogando-se na garrafa, olhando para ele com a cara infeccionada, com olhos mortiços e um sorriso magro, sem dentes, ele via nisso, o seu próprio futuro se ele se rendesse.


Dia 24 de dezembro a véspera de natal ele teria um turno mais puxado, porem seria o dia de receber seu salário, foi menos angustiado, sabendo que logo tudo aquilo terminaria ele poderia voltar a sua vida e quem sabe começar o ano com algo melhor, um emprego de verdade, e talvez conseguir trazer a tona um pouco da dignidade que ele perdera ainda jovem. Ele estava feliz consigo mesmo tinha conseguido resistir aos apelos da garrafa que gritava seu nome durante as noites insones que se seguiram inexoráveis nos últimos dias, ele estava bem, ainda aturdido, cansado, mas se sentindo fortalecido, queria se tornar alguém, queria pelo menos considerado um ser humano e não mais um lixo urbano, que era sempre deixado de lado, pelas pessoas que passavam com olhar de repulsa; lembrou-se dos dentes brancos e bem alinhados de uma senhora, que lhe deu alguma esperança, naquela época que ele ainda era jovem, tinha 13 anos, a senhora parou em sua frente e ficou com pena, pois estava descalço e com fome, ela o levou a uma padaria e disse para ele que comesse o que quisesse, depois comprou uma blusa e calçados para seus pés sujos, e aquilo apesar de um gesto isolado e momentâneo, foi o bastante, para ele se sentir bem, ele sentia o calor e o carinho que não experimentava desde que sua mãe o havia abandonado.

Nesse momento em um estalo se decidiu, que faria o natal de crianças pobres como ele era, uma data especial, assim que recebesse ia pedir ao dono da loja que trabalhou a roupa emprestada, para fazer uma boa ação e refazer um gesto que ele havia recebido.

O dia chegara ao fim, foi na fila do pagamento recebeu seu dinheiro, conversou com o seu chefe que falou que tudo bem, quanto ao traje de Papai Noel, desde que a roupa estivesse limpa e passada logo após o dia de natal.

Saiu às carreiras, passou em algumas lojas que ainda estavam abertas, comprou vários presentes baratos, mas que fariam diferença entre as crianças muito pobres, ia aos cortiços ao redor da cidade, que estavam apinhados de gente faminta e crianças a um passo da indigência e criminalidade.

Saiu com algumas sacolas, vestiu mais uma vez a roupa agora seria para algo que ele achava correto, algo que salvaria sua alma atormentada.

Saiu com sua caminhonete caindo aos pedaços, com os presentes na carroceria. Foi na parte sul da cidade, iria para onde as crianças, em sua maioria, nunca tinham visto um Papai Noel que não fosse pela vitrine de alguma loja, que eles não poderiam entrar, foi se afastando das ruas asfaltadas, das luzes natalinas e dos néons brilhantes, chegou nos charcos das beiras mais sujas da cidade, o lixo o recebia em todas as direções, ele estava indo no mais distante recôndito, onde as pessoas eram tratadas por “ratos” pelas pessoas que viviam na cidade. No caminho que seguia, visualizava-se a distancia o clarão da cidade, colorida pelas luzes natalinas, foi subindo umas estradas ruins e muito escuras até a beira do cortiço imundo, no alto de um lugar estéril, via-se de fundo a cidade estendendo seu tapete de luzes e sonhos.

Bret desce de sua caminhonete, sobe em sua carroceria e toca um sino, para chamar as pessoas. Seu traje encarnado atraiu olhares, que brilhavam no meio das casas feitas de madeira em sua maioria, olhos que se aproximavam, primeiro as dezenas depois as centenas, indo de encontro a luz e ao som do sino, os olhos famintos na escuridão agora ganhavam formas, pequenas formas humanas esquálidas, com uma fome ancestral em seus corpos, iam chegando e ficando em torno da caminhonete, Bret gritou e começou a distribuir presentes, que mãozinhas pequeninas pegavam sem saber o que fazer com aquilo, até que vários vultos cercaram toda a caminhonete e começaram a subir na carroceria, as sacolas foram destroçadas, Bret, já não tinha mais um sorriso nos lábios, as mãozinhas abandonaram os presentes de plástico barato e começaram a atacá-lo. Ele não conseguia se desvencilhar dos vários pares de mãos que o agarravam ao mesmo tempo, tentava gritar, mas foi sufocado pela enxurrada de braços ao seu redor, sentia mordidas em seu corpo, Bret estava prestes a ser sufocado por todos os corpos que o envolviam, nesse momento ele apenas viu o clarão dos olhos mortiços do pai, levantando um brinde para a própria morte, sentado em sua lápide fria; o velho ergueu a taça, bebeu e caiu de costas em sua cova, foi o ultimo momento de consciência de Bret antes de fechar os olhos para sempre.

O corpo de Bret foi despido das vestes natalinas, sua barba fora jogada de lado; seu corpo foi colocado sobre um braseiro, para se tornar um grande festim atávico, carne era mais importante para a felicidade dos “meninos ratos”, que bugigangas de plástico barato. A sociedade os tinha transformado em canibais famintos, haviam desenvolvido seus mais selvagens anseios, retornado aos valores ancestrais dos seus antepassados, o ato de devorar os inimigos e trazer para si a força daqueles que eram tragados, como uma vingança, um presságio da revolução que se avizinhava, os “ratos” já estavam programando um levante faminto, que tomaria a sociedade civilizada de assalto, Bret seria apenas o primeiro a ser devorado pelos dentes pequenos e rápidos da massa faminta, o natal seria tingido de sangue e de carne de primeira da uptown.


E no momento que começaram os fogos de artifício, anunciando o natal, o corpo crepitava na fogueira antropofágica das crianças, que em círculo, esperavam sua porção .

Ao fundo, a cidade brilhava com as luzes vermelhas e brancas em um carpete que se estendia até o infinito; e enquanto a fogueira aquecia as almas famintas, prontas para seu aperitivo, milhares de olhos brilhantes iam ao encontro doa brilhos e das luzes, onde iria começar a verdadeira ceia natalina...


Por Cleiner Micceno


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