segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Um conto de uma noite suja

A noite estava clara, a lua ia devagar pelo céu, a única coisa realmente escura naquele quarto de um hotel de terceira, era a alma de Antonin Blazak.

Ainda atordoado de sua ultima bebedeira, com os sentidos embotados, pelo sono e pelo álcool, mirava as paredes que ele não conhecia, os objetos perto de sua cama puída, eram deformados pelo reflexo da lua insone que tremulava pelo postigo lateral da janela com meia cortina aberta, no relógio, com ponteiros luminosos, marcava três da manhã. Ao lado de sua cama apenas visualizava seu par de sapatos pretos sem personalidade, e suas calças jogadas ao acaso em cima do tapete de cores berrantes, já gasto pelo tempo, devido provavelmente a alta rotatividade de pés pelo pardieiro de clientela duvidosa no qual havia acordado, alguns pequenos vultos de baratas corriam pelo chão de tacos descolados, o cheiro que pairava no ar não era agradável, um ar viciado de tabaco e bitucas de cigarro mofadas com um misto de vomito e urina. Ao virar sua cabeça despenteada , e com marcas de baba ressequida pela bochecha, depara com um corpo frio e inerte ao seu lado,com a visão bizarra , levanta-se de um sobressalto, ficando sóbrio no mesmo momento, perdendo qualquer resquício de sono.

Quem era dona daquele corpo inerte que estava ali embrenhado nas cobertas ao seu lado?

Uma profusão de pensamentos passou por sua cabeça e não fizeram nenhum sentido,não se lembrava de nada, literalmente nada.

Recompondo-se do susto foi devagar, até o outro lado da cama, acendeu um cigarro de um maço que pousava do lado do cinzeiro de plástico barato, meneou a cabeça como se estivesse com dores antigas em seu pescoço, seus olhos patéticos avistaram a caixa de fósforos, pegou um palito e sua mão trêmula acende um cigarro com muito custo, na primeira tragada, que desceu queimando sua garganta, parecia que ele ficara sem respirar por muitos anos, sentindo a dor do descolar de seus pulmões com a lufada de ar quente e fumaça, como um recém nascido que chora ao receber seu primeiro sopro ao sair do útero. O quarto voltou ao foco, a realidade tangível agora se tornou brutal, não era só mais um sonho ruim, como tantos que tivera, desde que saíra fugido de sua cidade natal na Hungria, há tantos anos, por ter dado um mau passo na vida ao se casar com uma prostituta que o tinha ferrado, vindo apenas com as roupas do corpo , muitos hematomas e uma jura de morte para São Paulo, agora isso era muito pior, e sua amnésia não ajudava em nada.

Refletiu por alguns minutos, que pareciam horas, mas o relógio ainda marcava apenas três e três da manhã. É estranho como perde-se a noção do tempo nessas situações.

Aproximou-se a passos curtos, com cuidado, tocou de leve o braço que estava arremessado para fora da cama , estava frio, ela estava realmente morta, criou mais coragem e puxou a coberta e viu enfim o rosto que brilhava na escuridão do quarto, a lua trouxe seu reflexo exatamente para o rosto da desconhecida, como uma lanterna macabra que mostra apenas o lado ruim da vida, aquele espectro agora se tornou real demais, era uma mulher envelhecida, com cabelos pintados de preto, desbotados com mechas brancas por desleixo de sua dona, o corpo estava nu da cintura para cima, ela não lhe parecia nada familiar.

Resolveu não acender nenhuma luz nem chamar atenção. Só com a claridade da janela e sua lua acusadora, revirou o quarto escuro para achar alguma coisa, uma pista, uma identidade.

Viu as roupas da estranha, pousadas sobre um sofá tão feio e gasto quanto o tapete, no meio das roupas, estava uma bolsa, alguns braceletes e duas cartelas usadas de Percodan e um frasco vazio de Valium e uma garrafa de rum barato pela metade.

Pegou a bolsa, abriu e despejou o conteúdo em cima do sofá, e junto com blisters, pentes, chaves e batom, caiu uma carteira , quem sabe ali estaria a verdadeira identidade da defunta.

Depois de abrir a carteira e pinçar aquilo que parecia ser uma carteira de motorista, ele se aproxima da janela com a lua inquisidora como testemunha, leu o nome desbotado - Mariene Le Feaux - não tinha muitas informações, nem endereço, apenas ano de nascimento, 1941, ela era mais jovem do que aparentava seu rosto encarquilhado, ela só tinha 42 anos, não muito mais que Antonin.

Naquele momento, Antonin, reflete sobre o que havia acontecido, vai até a cama, observa mais atentamente, vê os lábios da recém nomeada defunta Le Feaux , vê seu corpo intacto, parecia ser uma boa foda quando viva, mas, naquele momento, era mais um grande problema para um estrangeiro já fodido, e vê, ao lado do travesseiro, alguns comprimidos esmagados próximos ao pescoço da estática Le Feaux., e nota uma linha de saliva branca, refluindo de sua boca semi aberta. A puta resolveu se matar, justo aquele dia e justo do lado dele - pensa com desespero- nesse momento imaginou a policia, as perguntas, as torturas psicológicas, e sua ignorância total sobre tudo que aconteceu, tinha que tomar uma iniciativa, só não sabia qual era.

Quatro da manhã, Antonin já havia perdido qualquer esperança de solução, já havia pensado em esquartejar o corpo e levar aos poucos pra fora , desistiu da idéia por ele não ter uma faca e ser muito trabalhoso, afinal, ele não tinha estômago nem pra ver carne mal passada, pior ainda cortar carne humana, assim ele partiu para novas soluções,como jogar o corpo pela janela, também desistiu, não tinha nenhuma criatividade para ser marginal. Chegou à conclusão que precisava fugir. Uma idéia entrou em seu cérebro conturbado, se ele não sabia quem ela era e se tivesse só um pouco de sorte, seria fácil sumir dali na calada da noite, sem correr o risco de ter sua vida ferrada por essa troça de mau gosto que a vida lhe pregou. Resolveu se vestir, foi até a ponta da cama, vestiu suas calças, seus sapatos pretos ordinários, naquele momento, mais dignos que o dono, olhou para a rua, os primeiros lampejos do dia não tardariam aparecer no horizonte, as luzes da cidade pareciam mais débeis que de costume através dos prédios enfumaçados da velha São Paulo.

Se sentiu confiante, deu o ultimo nó no cadarço, abriu a porta, desceu dois lances de escadas bem devagar, os roncos dos hospedes ecoavam nos corredores de paredes descascadas. Já no primeiro andar, viu a portaria com uma luz mortiça, o atendente dormindo em um sofá de lona preta desbotada, passou por ele, avistou o livro de entrada, procurou seu nome, não achou nos registros, leu na pagina aberta, acusando entrada no hotel as 23 horas do dia anterior, M. Le Feaux, com uma garatuja disforme, e uma mancha de tinta, como se a caneta ficasse alguns segundos estática sobre o papel ensebado do livro de registro. Antonin se da por satisfeito, não havia provas, não havia traços de sua passagem naquele buraco fétido.

Deixou o prédio com passos rápidos mas silenciosos , ganhou a rua, acendeu o ultimo cigarro do maço e sumiu na escuridão da viela lateral, a lua o observava, era sua única testemunha.

Como uma sombra, Antonin, dissipa-se entre a fumaça da cidade. Foi uma noite difícil.

por Cleiner Micceno

6 comentários:

  1. Saudações Cleiner,

    Brou muito bom seu blog, fera mesmo.

    Tú escreves bem pra cacete.

    Curti muito esse texto, inexoravelmente bem redigído.

    Tramitando pelas nuances

    Tô te seguindo e voltarei muitas outras vezes.

    Tbm tenho um blog, quando tiver um tempo me visite lá.

    Abração

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  2. Porra, muito bom esse conto!
    Fiquei com vontade de ler um livro teu.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Bom demais "O Conto de uma Noite suja"
    Mas termina assim?
    Manda o desfecho pra mim!!!
    Abraçõ!!!

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  5. ahhaa termina assim mesmo o desfecho é um desfecho e aberto ehehee ao estilo bukowski heheeh

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allefuckinglluiah