O observador
A fumaça se espremia entre o abajur e a escrivaninha , formando círculos disformes no ar, Rebeca estava tensa, tensa demais, depois de dias difíceis e noites sem dormir. A sexta feira já estava em seus minutos finais, um cão na rua gania alto, talvez fosse fome, ela estava sentada na beira da cama, no cubículo de solteira onde morava, virava o rosto para o telefone de tempos em tempos, com um olhar desesperado, recapitulou cada momento, cada minuto daquele dia em seu pensamento, enquanto procurava passar o tempo, sua vida não era muito interessante, logo acabou seu resumo e pensou - que merda de vida! – Correu os olhos para a carta em cima da mesa, levantou-se de um salto e releu-a pela centésima vez naquela noite, as palavras embaralhavam-se a cada lida , talvez pelas manchas das lágrimas que borravam a tinta, ou simplesmente pelos seus olhos já estarem cansados demais de lerem sempre as mesmas palavras. Devolvia a carta em um golpe, como se a agressão descontasse sua raiva, mas apenas conseguia movimentos circulares de um resto de bebida barata em um copo sobre a mesa.
Voltava para a cama, cada vez mais taciturna, com uma voz gutural ela murmurava – por que? – e ficava inerte por mais um tempo, ela queria fazer algo, mas como? Estava paralisada, impotente, sentindo-se a pior pessoa do mundo, o quarto estava cada vez mais apertado para sua angústia prestes a explodir, sentia sua respiração faltar, não conseguia mais chorar, as únicas coisas vivas ali, eram os clarões dos faróis dos carros, que projetavam a sombra demoníaca de sua figura esquálida na parede, lampejos esporádicos da vida que definhava pouco a pouco. Rebeca estava no fim de sua sanidade.
Essa tortura tinha começado há alguns meses, e foi se instalando em sua vida, em uma sexta feira chuvosa, ela já se preparava para dormir quando o telefone tocou, eram exatamente os minutos finais de um dia estafante, como tantos outros, do outro lado uma voz sussurrante, falava com ela com familiaridade, a chamou pelo nome, - Quem é você? - perguntou Rebeca, a resposta veio simples e direta – Sou o Observador – respondeu a voz, em um tom jocoso, - Você não me conhece, mas eu sei tudo sobre sua vida – Não com certo espanto, Rebeca achava que era algum dos caras que trabalhavam com ela, ela não era muito popular, e poderia perfeitamente, naquele dia estar sendo alvo de mais uma das brincadeiras que sempre era vitima, ela resolveu dar corda ao Observador- Se você me conhece realmente e sabe tudo de mim, deve logicamente saber o nome de meu primeiro namorado – falou com convicção, pois ninguém do escritório de contabilidade saberia dizer, ela nunca entrara em nenhuma conversa mais íntima com ninguém, era uma pessoa fechada – Foi o nerd espinhento que todos chamavam de Sardento, o mesmo que tirou sua virgindade quando você tinha 17 em um ferro velho próximo a sua casa - disse ele com voz monótona. Silêncio... Rebeca ficou petrificada, com a tez pálida como papel. Começou a gaguejar algo como resposta e ouviu o click do telefone sendo desligado do outro lado. Ela não conseguiu dormir aquela noite.
No outro dia chegou no escritório, foi até sua mesa, sentou-se olhava para todos ao seu lado, seria algum deles? Ela estava remoendo sobre a ligação estranha que havia recebido.
E naquela noite no mesmo horário depois do trabalho, ela recebe de novo uma ligação do Observador, ele com sua voz pastosa e hipnótica fala com Rebeca, ela gagueja, tenta falar algo, ele a impede, começa a falar mais detalhes sórdidos da vida dela, como a transa aos 14 anos com a vizinha sua melhor amiga, em uma brincadeira inocente que se transformou em seu primeiro contato sexual com alguém, mesmo sem ter sido nada demais,só uns beijos, e umas roçadelas e chupadas, foi, pelo menos quatro anos antes do nerd espinhento que tirou sua virgindade debaixo de um guindaste em meio a carcaças de carros batidos. Falou de suas brigas com os pais, sobre coisas muito íntimas, como um tratamento de doenças venéreas na faculdade. Rebeca estava cada vez mais assustada, e mais uma vez ouviu-se o click e a linha emudecia logo depois. Uma noite mais Rebeca não conseguia dormir.
Ela começou a ficar paranóica, todos na rua eram suspeitos, pensou em ligar para a policia, mas estava impotente, não conseguia agir, era uma mulher tão discreta, solitária, por que estavam fazendo isso com ela, só queria que tudo parasse, voltasse ao normal.
Os dias foram passando, e todas as noites no mesmo horário as ligações continuavam, ela sempre atendia, havia uma força, uma coisa invisível que a fazia ouvir aquela voz, um misto de repulsa e sedução profundo em sua alma, que a desarmava completamente, por mais estranho que isso parecesse. Em cada ligação a voz se tornava mais detalhista, analisava as situações, chegava a descrever como ela se sentiu em cada dia descrito, ela começou a se acostumar com a voz soturna e sem rosto do outro lado, de uma forma peculiar, a voz entendia seus mais profundos sentimentos, não a julgava, apenas falava com a voz monótona, ele descrevia momentos obscuros da vida de Rebeca como um narrador mecânico, um confessor com voz robótica. As coisas que sempre a incriminavam em sua consciência eram expurgadas dia após dia, sendo solitária, com os anos ela desenvolveu uma persona doentia, foram vários anos de entregas sem rosto, sem nome de uma única noite apenas, ela caçava em bares, ruas escuras e becos, e se envergonhava disso segundos depois de consumados os atos, fugia na maioria das vezes sem nem olhar pra trás, ela só queria o prazer momentâneo, no escritório ela tinha que ficar sempre invisível, não gostava do contato continuado, se escondia, falava pouco, as pessoas com que convivia eram repulsivas, quase sempre se irritava com elas, que pareciam felizes ao seu lado, rindo e falando alto, sempre faziam piadas de péssimo gosto sobre tudo e principalmente sobre ela, em voz alta só para vê-la corar, mais de uma vez fizeram convites nojentos em seu ouvido, só para deixá-la irritada, cada dia mais ela odiava os seres humanos, mas, a voz por mais pungente e suja que parecesse, a desvendava, a seduzia, ela não se sentia mais ameaçada, tentava em vão perguntar quem era, queria vê-lo pessoalmente, mas apenas ouvia sempre o som do telefone sendo desligado, quem seria o Observador.
Ela tinha emagrecido muito em poucos meses, tentava ficar cada dia mais oculta no escritório, estava pálida, as noites sem sono e a alimentação irregular estavam cobrando seu preço, mas no escritório, ninguém tinha notado seu estado deplorável, ela contava cada minuto do dia, esperando a chegada do horário da ligação do seu encontro noturno com a voz que desvendava seu eu interior.
Na mesma noite o telefone toca e o Observador, começou ir além de suas coisas passadas, descreveu em detalhes, o quarto dela, o que vestia, suas roupas intimas, até o cigarro que ela estava fumando. Era assustador, como ele poderia saber tantas coisas, procurou pelo quarto uma câmera, um microfone, qualquer coisa que fizesse sentido, sua respiração acelerava, seu coração descompassava, nada, não havia nada no quarto, as janelas estavam fechadas com cortinas finas, mas bloqueavam a visão, como ele sabia de tanta coisa. Estava ficando louca, só poderia estar desequilibrada.
E naquela sexta feira fatídica, depois de mais um dia no trabalho se escondendo como uma sombra pelos cantos, chega em casa, e depois de um banho longo, um dos poucos prazeres que ainda a reconfortavam fora a voz, sentia-se limpando a sujeira que as pessoas passavam, estava se limpando para seu encontro telefônico, já completava seis meses de noites interrompidas sempre no mesmo horário, sua vida tinha sido emulada por um telefone, cada noite sombria, cada transa suja, cada pessoa repugnante que havia tocado em seu corpo, mesmo que por poucos minutos, tudo já tinha sido dito, ela queria simplesmente ver qual seria próximo passo do Observador, talvez agora depois de tantos meses, ele resolvesse tê-la de verdade, ele seria eterno em sua vida, ele a compreendia em cada fio de cabelo, sabia tudo sobre ela, não precisaria nunca ocultar-lhe nenhuma vergonha. Logo após sair do banho uma carta passa por baixo da porta, sem remetente, apenas com letras garrafais escritas na frente do envelope, REBECA, ela se aproxima pega o envelope, seu coração quase sai pela boca, abre a porta, o corredor estava vazio, ela seminua, corre para fora na esperança de ver alguém, nada, ninguém.
Volta para dentro, ensaia vários minutos olhando para o envelope antes de abri-lo, esta impaciente, toma um gole de algo para ganhar coragem, acende mais um cigarro, abre o envelope devagar, quase como uma caricia sexual, e lê o conteúdo da carta.
Varias horas depois ela se encontrava sentada na cama, tensa e olhando para o telefone, impaciente, o telefone não tocara, ela já sabia que não iria tocar, mas mesmo assim ficou la estática, a madrugada de sábado chegou, os ponteiros do relógio ribombavam em seu cérebro, releu mais uma vez a carta que já tinha lido uma centena de vezes aquela noite, foi até a cozinha minúscula, pegou uma faca afiada, senta-se em frente ao telefone coloca a carta no chão, Rebeca penetra a carne de sua barriga profundamente, corta seus órgãos internos, em um Harakiri ocidental , ela não sentia dor, a única dor que ela sentia não era na carne, seu corpo pende para o lado, seus braços despencam, uma mancha mista de sangue e merda escorre do seu corpo minúsculo caído, ensopando um tapete branco e a carta caída ao lado do telefone. As letras na carta iam sumindo a cada mancha do sangue mas conseguia-se ler - Ninguém pode desejar alguém que se saiba de todos os segredos.
E na segunda-feira, ninguém notou que Rebeca não tinha ido trabalhar.
cleiner micceno