O sol apareceu naquele dia às cinco e trinta e sete, os primeiros raios perpendiculares cortavam os prédios da cidade. Às cinco e trinta e oito o jornaleiro já estava na esquina à frente de onde pegava os jornais, descia rápido, estava atrasado, Sr Werner, um judeu alemão, sobrevivente de Dachau na segunda guerra, levantava-se todos os dias aos primeiros apontamentos das luzes matinais, e gostava de ler a página de esportes assim que abria a porta, ficava lá, estático a espera, e assim que chegava o jornal, lia as linhas com rapidez apesar de sua idade avançada, com uma xícara de café em uma mão equilibrando o jornal com a outra, e o jornaleiro sabia que se chegasse no horário, ganharia uma gorjeta que já livraria sua ida a padaria. Parou na porta, e o velho não estava, aguardou alguns minutos, ele não apareceu, simplesmente deixou o jornal na porta e seguiu seu caminho , imaginando que passaria sua manhã sem comer nada. Às seis horas o sol já ia atravessando as ruas, entrando nas casas, não pedindo licença enchendo os átrios, janelas e quartos de uma luz laranja comum ao nascer do sol, trazendo consigo o rufar das asas dos pássaros que madrugam ao raiar da aurora.
Dona Zilma, uma senhora conscienciosa, acordava antes da família inteira e fazia seu café e deixava tudo pronto pra seus filhos e marido, naquela manhã sentiu um grande desejo de sentar-se na varanda, sem roupa, como veio ao mundo, e lá ficar pensando em quando era criança e atirava pedras no lago para ver os círculos que se formavam… As seis ainda, os sinos da igreja e a sirene da fábrica de tecidos, não tocaram como de costume, como que se recusassem atrapalhar o sono alheio.O porteiro da fábrica simplesmente não lembrava seu nome, nem o que estava fazendo sentado ali, começou gritar por sua mãe em pleno pátio, onde se aglomeravam motoristas de frete, faxineiros e fiandeiras, que em um súbito momento começaram a chamar também por suas mães, não por chacota, mas por todos se sentirem perdidos.
Às sete horas no necrotério do hospital central o coração de Dimitri, velho russo dado como morto as três e vinte sete da manhã, com o formulário assinado pelo médico plantonista, começa a bater de novo, ele abre os olhos subitamente, se levanta e recita frases do Guerra é Paz em russo enquanto acorda os outros mortos daquela noite, que começam, cada um a seu tempo recitar poemas e citações de livros que fizeram suas vidas ter sentido, uma algaravia chamou atenção do funcionário que ficava do lado de fora que fez o sinal da cruz e gritou bem alto – Podem me levar que eu já estou preparado! -.
Às sete e meia, no décimo segundo andar de um prédio central, um velho vai até sua janela, sobe no peitoril, esgueira-se até a sacada minúscula abre os braços e salta, com os olhos fechados ele imagina seu primeiro beijo, à noitinha a beira da orla, quando era franzino e acanhado, imaginou os lábios vermelhos dela tocando os seus, o cheiro dela invadindo seu nariz, o gosto de sua saliva com bala de alcaçuz vermelho, lembrava do rosto, lembrava dos olhos trigueiros, mas não lembrava seu nome, pensou nisso enquanto planava com seus braços quase angelicais, indo direto ao encontro do concreto gritou: – Cristinaaaaaaaaaa!- Levantou vôo e seguiu em direção ao sol alaranjado que queimava a relva e fazia brilhar as pedras e cascalhos próximos à linha de trem. Às oito horas, um menino descalço caminhava sozinho, segurava em suas mãos esquálidas uma pequena caixa de música que repetia sempre a mesma nota.
Os cachorros todos uivaram em uníssono naquela manhã quente e assim que os relógios marcaram nove horas, um som agônico, com diversos tons, foi ouvido. Reconhecia-se entre os uivos os cães pequenos e os cães grandes, uma ópera canina, às nove e um exatamente, os cachorros cessaram seu coral, todos ao mesmo instante, como se o som fosse suspenso do ar sem eco ou refluxo.
Às dez horas um coronel reformado, sai marchando sozinho, coloca sua roupa, destacando todos seus galões e medalhas. A marcha solitária toma as ruas, as pessoas param em todas as calçadas, um cordão de isolamento é colocado e as vozes dão vivas ao desfile de um homem só, suas botas batem contra as pedras do calçamento e fazem o barulho compassado, o som pac, pac, pac, pac, se multiplica e mesmo tendo apenas um homem, o som é de um batalhão seguindo seu coronel, que desce a rua principal parando o trânsito. Às onze horas todos abrem seus guarda-chuvas e uma saraivada de tiros derruba milhares de pombos, que caem como uma chuva por toda a cidade, uma chuva de sangue e penas, os canos, soltam uma fumaça cinza azulada, com pausas pequenas entre um disparo e outro
Ao meio dia o relógio da estação parou, os relógios de todos se recusaram a dar mais um passo, soltar mais um minuto que fosse de sua gaiola de tempo, o sol em descompasso com sua altivez diária, se recusava a subir mais no céu, ele ainda estava alaranjado, juvenil, como se tivesse nascido há pouco. O trem não chegou na estação ficou parado alguns metros antes da gare, as pessoas como os minutos, estavam presas, não conseguiam sair de onde se fixaram, mesmo não tendo nada que as impedisse fisicamente de se livrar do cárcere invisível, o Sol libertador da manhã, tinha resolvido ser tirano; por preguiça, por vaidade ou apenas por diversão resolveu ficar ali parado, no meio do céu, enquanto o mundo entrava em uma hecatombe silenciosa, estava tudo parado como em uma brincadeira cósmica, passaram-se horas, quem sabe quantas, afinal o tempo tinha estacado, as folhas deixaram de cair na praça central. Um colibri parou seu vôo em pleno ar, nada mais se movia. A boca de José Antonio ficou imóvel no momento que ia dizer para sua Maria que queria se casar e viver com ela o resto de seus dias, da mesma forma que as palavras de um jovem executivo foram congeladas no ar, quando ia praguejar por ter suas roupas enlameadas por um carro preto que passou de seu lado chapinhando a lama da uma poça na esquina da rua Assunção. Um jovem apaixonado prestes a se jogar de uma ponte carregava nas mãos próximas ao peito, um bilhete onde ele falava em três linhas que estava se matando por amor, o vento havia ouriçado seus cabelos, tampando sua face, como que para esconder esse último momento. Foi também congelada a tristeza de uma mulher de nome Isabel, que estava com lágrimas começando a rolar por seus olhos e um telefone nas mãos, soube que sua mãe havia falecido. Um castelo de areia na praia brilhava com uma luz branca, prestes a ser destruído por uma onda que foi paralisada há poucos centímetros de sua torre principal. O fogo que ardia em uma siderúrgica agora parecia inofensivo, não existia mais movimento, nem calor ou frio. O sol invadia todos os cantos, mas não havia mais temperatura.
De repente da mesma forma que tudo parou, recomeçou sua marcha fugaz, acelerada, pois o mundo tinha de voltar a seu eixo, com suas alegrias e tristezas, com suas pressas, com suas dúvidas, os ponteiros começaram a correr mais rápido, libertando os minutos que antes estavam presos, soltava-os aos borbotões, eles corriam como se para acertar a hora na marra, fizeram as tristezas, as alegrias, as pressas e as dúvidas, assim como as repostas, correrem. O dia estranho era como uma piada, uma folga, um dia de libertação, que tinha ido longe demais, tudo aquilo que tinha saído de seus esquadros, de suas rotinas, agora haveria de correr resfolegando para sua própria linha, para o seu próprio prumo, a vida se tornou rápida, o colibri voou mais rápido que suas asas agüentavam, mas o mundo ainda estava em descompasso, estava se acertando, tudo era acelerado, as pessoas resolviam suas vidas, seus trabalhos, suas querências, tudo tomou fôlego e foi-se terminar no fim do dia.
Com a pressa, aquilo que atrasou chegou muito rápido, o dia passou em minutos, o Sol estava cansado de ficar tantas horas despejando sua luz de jovem, quis se recolher, se esconder um pouco até poder tomar fôlego. E a noite caiu magistral, ela queria a paz, como uma mãe brava com as travessuras de seu filho. Trouxe de novo a normalidade o tempo foi voltando a seu ritmo normal, todas as marchas, os vôos, as palavras, os sons, os desassossegos, os jornais não lidos e os atrasos e indiscrições, foram sendo esquecidos naquele que foi um dia de liberdade e de pouca razão, como um sonho perdido em uma noite febril, a cada corpo cansado e dolorido pelo dia longo, mais longo que os outros, pela posição estacionaria que tinham ficado, que resolviam repousar os pensamentos que eram apagados, como que nunca existido, e aos poucos iam sumindo, a chuva de pombos mortos do dia anterior, os sangues, as penas, os mortos que recitavam, a algazarra canina e todas as lembranças; e quando o último par de olhos se fechou para repousar, com eles foram também os últimos fios que regeram aquela algazarra de vida, e ao dar cinco e trinta e sete da manhã de novo, a Lua já tinha ajeitado tudo, as coisas voltaram a seguir seu rumo, e o Sol maroto, apareceu mais tarde, como se tivesse envergonhado, sua luz ia entrando de fininho nas calçadas e ruas, pedindo licença, o Sol havia se arrependido, e depois de todas brincadeiras, de todo caos que havia causado, decidiu pedir desculpas, e seus raios acariciaram aquela manhã com ternura…
escrito por Cleiner Micceno
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