quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Noir - ou - Uma noite de merda

Noir - ou - Uma noite de merda


Noite alta, cães vira-latas mexem no lixo jogado nos becos. A fumaça do cigarro sai espessa, tropeço em meus próprios passos. Vejo a sombra lúgubre em forma de vareta de Constantin, está parado debaixo de um poste de luz mortiça. Na sua mão um isqueiro sendo virado de lado a lado, um daqueles Zippos sem nada de especial. Não era um encontro casual, ele tinha notícias da pequena que sumiu do bordel da central.
— E aí Constan? Quais as novas? – acendi outro cigarro enquanto perguntava quase sem entonação.
— A pequena saiu mais cedo ontem à noite, foi direto pro carro do figurão da jogatina clandestina, segundo me disseram…
— Mas a fonte é quente?


—É sim, foi um mendigo que vive ali no beco esperando os restos da madrugada. O cara conhece todo mundo só pelo vai e vem noite adentro. Naquele beco saem os que não querem ser vistos, porém a noite tem muitos olhos, mesmo os que pertencem à gente invisível.
—Mas, e se esse cara estiver mentindo? Não dá pra acreditar em nenhum cão de rua desses…
—Pode confiar, eu já peguei mais de uma bocada dele. Ele cobra sempre um litro de Jim Bean, é o preço, até por isso ele observa tudo. É assim que se ganha um adicional de insalubridade do beco.
—Bem, se a gatinha estiver por aí vamos achar… O cara dela tá preocupado, a pequena vale bastante pelo jeito, ele disse que a quer não importa o preço que custe.
—Bem, depois pedimos também um adicional noturno e de insalubridade do beco, só que não será uma garrafa de uísque vagabundo – Constantin falou isso de forma pensativa e com um leve sorriso no rosto.


A noite parecia ainda mais escura naquela imensidão de luzes disformes e opacas da madrugada, aqueles lumes espocavam de forma discreta no vidro embaçado do carro, desenhando imagens fantasmagóricas no retrovisor. Eu odiava aquela cidade, odiava a sujeira e os vagabundos podres que pululavam as encostas dos bairros periféricos. Dobramos uma esquina qualquer, estávamos entre uma rua curta e uma pequena praça que dava em lugar nenhum, nem os insetos queriam estar ali. Paramos ao lado de uma casa de portão verde corroído pelo limo. Esgueiramos nossos corpos de mansinho até o outro lado da praça, uma luz fraca em uma janela na parte superior daquela casa sóbria de pedra, com muros baixos. Soubemos que era ali que o velho da jogatina ficava depois das noites na cidade, tínhamos que dar uma conferida. Eu tava prevendo que a noite seria uma merda.
—O puto tem grana George, de uma sacada nessa porra de casarão – disse Constantin com sua melhor cara de safardana.
—Vários anos enrolando otários têm que ter alguma utilidade. Vamos contornar e pular no fundo do terreno… Até agora não vi nenhum dos comparsas do velho.
Saímos de leve até a outra esquina, onde terminava o muro. Andar pelas sombras era fácil, o lugar estava escuro como um inferno apagado. Fiz um apoio para o Constantin, que se arremessou sem pensar para cima do muro que tinha no máximo uns dois metros. Lá de cima ele me ajudou subir. Pulamos pra dentro, nenhum sinal dos gorilas. O velho aparentemente não se preocupava com ataques no meio da noite.


Escorregamos sem fazer barulho até a frente, só tinha um cara encostado em um carro preto, fumava despreocupado; acho que era o motorista. Passamos devagar por trás do carro, nada que uma boa pancada com a coronha do 38 de Constantin direto na têmpora não resolvesse.
Mais ninguém no caminho até a entrada. Achei estranho demais, isso não tava certo.
Fiz um sinal pro Constantin ficar a postos já com arma na mão. Entramos de chofre, empurramos a porta, tava destrancada. O som da porta ecoou na porra da casa inteira, parecia um mausoléu. Nada, ninguém na parte de baixo, só uns poucos móveis empoeirados.
 – Que merda! – balbuciei – O que tá acontecendo aqui?
Subimos as escadas dois degraus por vez, mais assustados que gatos. Chegamos a um corredor ainda mais escuro e sombrio. Nada, simplesmente nada. Cada passo ecoava, mesmo que você esfregasse os pés no assoalho de leve. Depois de uns poucos segundos divisamos uma luz tênue nos fundos. Continuamos andando o mais devagar e silenciosamente possível.
Abrimos a porta devagar, um cheiro de sangue e vísceras invadiu nossos narizes.
O velho estava lá sentado, de costas para nós, quase em transe, nem notou nossa presença. A garota estava lá também, morta, pendurada em uma espécie de gancho de açougueiro. Abaixo dela um balde coletando o sangue que escorria de seu corpo recém-aberto. O velho estava tirando pequenas lascas do corpo e degustando como se fosse um manjar. Meu estômago embrulhou assim que me deparei com aquela cena terrível. Constantin estava aparvalhado como uma estaca. Eu gritei:
—O que você está fazendo, velho filho da puta?
Ele virou lentamente como se estivesse ainda em transe, quando olhou para nós ele se levantou rápido e nem pensou, pegou uma faca que deve ter usado para retalhar a pobre alma que estava ali e partiu pra cima de Constantin, que estava mais próximo. Disparei três vezes, não eram necessários tantos, o primeiro já tinha sido direto no centro da testa.
Os tiras chegaram um pouco depois, foi necessário, aquilo tudo ali era muito macabro.
Respondemos uma dúzia de perguntas, fomos intimados a comparecer na chefatura, mas só no outro dia, o cara do distintivo aliviou a nossa, podíamos ir embora naquela noite, já nos conhecia de outras paradas ruins.
Do lado de fora Constantin começa falar, ainda com a voz trêmula. Mesmo acostumado com a imundície, um cara ainda tem um pouco de sua sanidade para ser afetada.
— Porra George, o que foi isso chapa?
— Não sei, tem muita gente doente por ai Constantin, muita gente doente.
— E o cara, o cara da pequena, o que vamos fazer?
— Vamos contar a verdade, é o que nos resta, ele vai saber pelos jornais de qualquer jeito…
— Além de tudo… Não vamos receber – falou Constantin agora já mais conformado com tudo.
— E nem ele vai receber a pequena… Que merda! Odeio essa cidade.



Por Cleiner Micceno

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