Noir - ou - Uma noite de merda
Noite alta, cães vira-latas mexem
no lixo jogado nos becos. A fumaça do cigarro sai espessa, tropeço em meus
próprios passos. Vejo a sombra lúgubre em forma de vareta de Constantin, está
parado debaixo de um poste de luz mortiça. Na sua mão um isqueiro sendo virado
de lado a lado, um daqueles Zippos sem nada de especial. Não era um encontro
casual, ele tinha notícias da pequena que sumiu do bordel da central.
— E aí Constan? Quais as novas? –
acendi outro cigarro enquanto perguntava quase sem entonação.
— A pequena saiu mais cedo ontem
à noite, foi direto pro carro do figurão da jogatina clandestina, segundo me
disseram…
— Mas a fonte é quente?
—É sim, foi um mendigo que vive
ali no beco esperando os restos da madrugada. O cara conhece todo mundo só pelo
vai e vem noite adentro. Naquele beco saem os que não querem ser vistos, porém
a noite tem muitos olhos, mesmo os que pertencem à gente invisível.
—Mas, e se esse cara estiver
mentindo? Não dá pra acreditar em nenhum cão de rua desses…
—Pode confiar, eu já peguei mais
de uma bocada dele. Ele cobra sempre um litro de Jim Bean, é o preço, até por
isso ele observa tudo. É assim que se ganha um adicional de insalubridade do
beco.
—Bem, se a gatinha estiver por aí
vamos achar… O cara dela tá preocupado, a pequena vale bastante pelo jeito, ele
disse que a quer não importa o preço que custe.
—Bem, depois pedimos também um
adicional noturno e de insalubridade do beco, só que não será uma garrafa de uísque
vagabundo – Constantin falou isso de forma pensativa e com um leve sorriso no
rosto.
…
A noite parecia ainda mais escura
naquela imensidão de luzes disformes e opacas da madrugada, aqueles lumes
espocavam de forma discreta no vidro embaçado do carro, desenhando imagens
fantasmagóricas no retrovisor. Eu odiava aquela cidade, odiava a sujeira e os
vagabundos podres que pululavam as encostas dos bairros periféricos. Dobramos
uma esquina qualquer, estávamos entre uma rua curta e uma pequena praça que
dava em lugar nenhum, nem os insetos queriam estar ali. Paramos ao lado de uma
casa de portão verde corroído pelo limo. Esgueiramos nossos corpos de mansinho
até o outro lado da praça, uma luz fraca em uma janela na parte superior
daquela casa sóbria de pedra, com muros baixos. Soubemos que era ali que o
velho da jogatina ficava depois das noites na cidade, tínhamos que dar uma
conferida. Eu tava prevendo que a noite seria uma merda.
—O puto tem grana George, de uma
sacada nessa porra de casarão – disse Constantin com sua melhor cara de
safardana.
—Vários anos enrolando otários
têm que ter alguma utilidade. Vamos contornar e pular no fundo do terreno… Até
agora não vi nenhum dos comparsas do velho.
Saímos de leve até a outra
esquina, onde terminava o muro. Andar pelas sombras era fácil, o lugar estava
escuro como um inferno apagado. Fiz um apoio para o Constantin, que se
arremessou sem pensar para cima do muro que tinha no máximo uns dois metros. Lá
de cima ele me ajudou subir. Pulamos pra dentro, nenhum sinal dos gorilas. O
velho aparentemente não se preocupava com ataques no meio da noite.
Escorregamos sem fazer barulho
até a frente, só tinha um cara encostado em um carro preto, fumava
despreocupado; acho que era o motorista. Passamos devagar por trás do carro,
nada que uma boa pancada com a coronha do 38 de Constantin direto na têmpora
não resolvesse.
Mais ninguém no caminho até a
entrada. Achei estranho demais, isso não tava certo.
Fiz um sinal pro Constantin ficar
a postos já com arma na mão. Entramos de chofre, empurramos a porta, tava
destrancada. O som da porta ecoou na porra da casa inteira, parecia um
mausoléu. Nada, ninguém na parte de baixo, só uns poucos móveis empoeirados.
– Que merda! – balbuciei – O que tá
acontecendo aqui?
Subimos as escadas dois degraus
por vez, mais assustados que gatos. Chegamos a um corredor ainda mais escuro e
sombrio. Nada, simplesmente nada. Cada passo ecoava, mesmo que você esfregasse
os pés no assoalho de leve. Depois de uns poucos segundos divisamos uma luz
tênue nos fundos. Continuamos andando o mais devagar e silenciosamente
possível.
Abrimos a porta devagar, um
cheiro de sangue e vísceras invadiu nossos narizes.
O velho estava lá sentado, de
costas para nós, quase em transe, nem notou nossa presença. A garota estava lá
também, morta, pendurada em uma espécie de gancho de açougueiro. Abaixo dela um
balde coletando o sangue que escorria de seu corpo recém-aberto. O velho estava
tirando pequenas lascas do corpo e degustando como se fosse um manjar. Meu
estômago embrulhou assim que me deparei com aquela cena terrível. Constantin
estava aparvalhado como uma estaca. Eu gritei:
—O que você está fazendo, velho
filho da puta?
Ele virou lentamente como se
estivesse ainda em transe, quando olhou para nós ele se levantou rápido e nem
pensou, pegou uma faca que deve ter usado para retalhar a pobre alma que estava
ali e partiu pra cima de Constantin, que estava mais próximo. Disparei três
vezes, não eram necessários tantos, o primeiro já tinha sido direto no centro
da testa.
…
Os tiras chegaram um pouco
depois, foi necessário, aquilo tudo ali era muito macabro.
Respondemos uma dúzia de
perguntas, fomos intimados a comparecer na chefatura, mas só no outro dia, o
cara do distintivo aliviou a nossa, podíamos ir embora naquela noite, já nos
conhecia de outras paradas ruins.
Do lado de fora Constantin começa
falar, ainda com a voz trêmula. Mesmo acostumado com a imundície, um cara ainda
tem um pouco de sua sanidade para ser afetada.
— Porra George, o que foi isso
chapa?
— Não sei, tem muita gente doente
por ai Constantin, muita gente doente.
— E o cara, o cara da pequena, o
que vamos fazer?
— Vamos contar a verdade, é o que
nos resta, ele vai saber pelos jornais de qualquer jeito…
— Além de tudo… Não vamos receber – falou
Constantin agora já mais conformado com tudo.
— E nem ele vai receber a
pequena… Que merda! Odeio essa cidade.
Por Cleiner Micceno
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