quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Rogério Sganzerla - O abismo da marginália cinematográfica

No final dos anos 40 e durante os anos 50 bem no período pós-guerra a Itália se reconstruía social e culturalmente com o neorrealismo de Rossellini e Vittorio de Sicacom filmes que usavam como cenário a própria realidade, assim como atores amadores e pessoas do povoE com inspiração nessa estética e nesses preceitos alguns cineastas como Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Rui Guerra, Carlos Dieguesentre outros, na década de 60, começam a tomar essas ideias e colocá-las em pratica com o velho bordão do Glauber Rocha “Uma ideia na cabeça e uma câmera na mão” começa ai saga do Cinema Novo no Brasil, com obras como “Os Fuzis”, marco inicial de Rui Guerra, e "Deus e o Diabo na Terra do Sol" de Glauber Rocha. Um cinema de esquerda, contestatório e adaptado a realidade brasileira, mas mesmo assim ainda cheio de ranços e de cineastas que com o passar dos anos virariam a casaca, os ideais e suas raízes.




No final dos anos 60 alguns diretores que até então tinham simpatia, (ou saíram direto do berço do Cinema Novo), começaram a contestar a lei estética vigente. Tendo como pais espirituais Ozualdo Candeias com seu grande filme “ A Margem” de 1967 e o agressivo José Mojica Marins com o genial “A meia noite levarei sua alma”.
Diferentes do Cinema Novo, com uma estética seminal e agressiva, beirando o surreal, um cinema cru, filosoficamente muito distante do ufanismo intelectual engajado dos cinemanovistas, nascia ai a base do Cinema Marginal.
Boca do Lixo, no centro velho de São Paulo, que compreende o quadrilátero delimitado pelas ruas Duque de Caxias, Timbiras, São João e Protestantes (região da Sta Ifigênia e Praça da Republica) foi o berço do Cinema Marginal, que foi pejorativamente chamado de Udigrudi por Glauber Rocha, uma corruptela abrasileirada de UNDERGROUND. A Boca que contava com a maior concentração por metro quadrado de prostitutas, bandidos e escroques de todos os tipos, devido a estação de trem ali próxima, e de onde vieram parar um sem numero de produtoras de filmes, que viabilizou vários diretores iniciantes a começarem suas obras nesse espaço maldito, regado a sexo e malandragem.
E dessa mesma Boca saem vários diretores que viriam a formar a nova estética, rompendo com o cinema novo, trazendo um cinema irônico, urbano, e libertário, sintonizado com a contracultura e as vezes pagando caro por isso; com obras com dificuldade para serem exibidas, prejuízos e até mesmo impossibilidade de apresentação de trabalhos prontos por muitos anos seja  por não fazer parte de um establishment imposto pelos distribuidores, ou por puro boicote da censura oficial, e até mesmo por certas pessoas descontentes.
É dessa realidade que vem uma leva de novos cineastas como Carlos Reichenbach, Andrea Tonacci e logicamente Rogério Sganzerla.


Sganzerla é um cineasta sui generis, dono de uma estética forte com influencias de vários cineastas como Samuel Fuller , Godard e Orson Welles, em sua obra inicial “ O bandido Da Luz Vermelha” de 1968, ele tem uma relação de amor e ódio ao cinema novo. A quebra da estética formal de narrativa para fazer um filme urbano, mas, imerso na cultura nacional. A primeira frase que se ouve do bandido no filme, “quem sou eu” complementada depois por “...quando a gente não pode fazer nada a  gente avacalha, avacalha e se esculhamba” reflete essa idéia de estar fora de uma posição definida dentro de um conceito pré concebido, uma pergunta existencialista que permeia toda obra desse cineasta que sempre esteve contra a maré, mas se mantendo sempre fiel a seus ideais estéticos e filosóficos.
Eu acho que o cinema é uma atividade produtiva: manter a língua, a imagem do nosso país” diria sganzerla pouco antes de falecer em 2004. E ele fez isso com maestria no bandido. Usando a linguagem coloquial espontânea dos personagens que surgem desse submundo das entranhas de são Paulo dos anos 60.
As frases que marcam o filme são afirmações metafóricas sobre a realidade social e política brasileiras, a beira do recrudescimento da censura “... o terceiro mundo vai explodir e quem tiver de sapato não sobra” é repetido a exaustão, o mosaico que o bandido forma com políticos coronelistas, a força repressiva policial, a fauna que circula pela metrópole suja, fazem parte desse microcosmo social brasileiro sem muita perspectiva, que é agravada pela imprensa sensacionalista marcada pela narração renitente, que se desenvolve durante o filme, uma relação anárquica com os valores instituídos, dando destaque a marginália e a vida no fio da navalha.


Sganzerla continua a saga dos desvalidos e amorais em “ A mulher de todos” filme, que ele depois de inteiro editado, teve de recorrer a restos de cenas para conseguir que o filme atingisse o tempo necessário de um longa metragem. O filme tem sua mulher, Helena Ignez, no papel principal de Ângela Carne e Osso, a inimiga numero um dos homensSganzerla vai fundo na sátira aos valores burgueses e vazios da sociedade em plena decadência, com suas relações efêmeras e o vazio atrás das mascaras sociais.
Já em 1970 ele vai para o rio onde com Julio Bressane formam a Bel-Air Filmes , dessa época datam “Sem essa, Aranha!” , “Betty Bomba, a exibicionista” e o “Copacabana Mon Amour” que tem a desglamourização da imagem carioca de cartão postal como seu principal tema, o que Sganzerla faz com uma ironia certeira.
o cineasta passa por uma fase complicada ficando sem lançar nenhum longa de 1971 até 1977 quando termina o “Abismu” filme enigmático feito com recursos próprios, com Norma Bengell, José Mojica Marins, Wilson Grey e Jorge Loredo. O filme passa por uma maratona para poder ser lançado, Norma Bengell vendeu um apartamento para que fosse concretizada a produção do filme de Sganzerla, que sofre uma espécie de repressão velada por parte dos exibidores. Ele fala sobre isso em 1981 quando o filme já teria conseguido aval da censura mas não conseguia salas para exibição:
“ O que fazer diante do arbítrio de incompetência treinada? Eu, que não sou burro, sempre soube que existe um boicote contra meus filmes. Falei demais? Saibam que por idealismo nunca calei-me diante do fato de intuir precocemente as coisas. Serei tão importante e ameaçador assim? Se fui considerado dos mais criativos realizadores do País, por que cuidadosamente não deixam ir às telas... ou seja tenho filmes arquivados há dez anos... que tal ? Não seria um boicote armado pelos intelectuais de araque?”


Esse não seria o ultimo embate de Sganzerla com dificuldades de lançar um trabalho.
A obsessão pessoal de Sganzerla pela vinda de Orson Welles ao Brasil em 1942 para gravar “It´s all true (É tudo verdade)” rendeu uma série de trabalhos sobre o tema. A garimpagem sobre isso começa ainda em 1980 e tem como resultado: “Nem tudo é verdade” de 1986, “A linguagem de Orson Welles” curta de 1989 e “É Tudo Brasil” de 1997.
Seu ultimo trabalho, com ele já fragilizado com um tumor no cérebro, é o “O signo do caos” de 2003 um anti-filme, com questionamentos profundos sobre o fazer cinema no Brasil, com mistura de drama e thriller policial, e ainda as ultimas partes sobre Welles.
Foi mais uma maratona árdua para conseguir apoio e lançar o filme depois de pronto. Concretizado o tão esperado lançamento, conseguiu o premio candango de ouro por seu filme no 36° festival de cinema de Brasília mas por estar debilitado não conseguiu ir até a premiação.
Morreu no dia 9 de Janeiro de 2004, vítima de um tumor no cérebro e deixando na cultura nacional um vácuo difícil de ser preenchido.


Quem tiver de sapato não sobra – por Cleiner Micceno



Filmografia de Rogério Sganzerla

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