sábado, 19 de setembro de 2009

O homem que perdeu a hora

O homem que perdeu a hora

Ele se levantou assim que o despertador deu três toques, como fazia todas as manhãs, foi até o banheiro, se olhou no espelho, pegou a pasta de dente, passou na escova, escovou cada quadrante bucal por 30 segundos exatos, sua vida era meticulosa nos mínimos detalhes, cada movimento era precedido de uma análise, cada passo era contabilizado em sua vida, cronometrava cada ato do seu dia a dia, sabia quantos minutos levava cada movimento de sua manhã, despertava sempre no mesmo horário, tinha uma hora e meia para chegar ao escritório assim que saia do banheiro. Já tinha feito um cronograma completo, onde colocava até os possíveis imprevistos, tinha 45 minutos de percurso até o trabalho, contando os atrasos decorrentes do caminho até a estação, como semáforos, calçadas cheias e até algum pequeno deslize de horário do trem. Olhava para o relógio e fazia contas mentais sobre o tempo que levaria para se vestir, pentear os cabelos, fazer a barba, fazia isso cinco dias por semana, levando o total de 30 minutos por dia , ou seja, duas horas e meia na semana de trabalho, 9000 segundos desperdiçados com coisas cotidianas, ele tinha como meta conseguir melhorar esse tempo. Enquanto pensava isso, tomava seu café da manhã saudável, já que ele fazia contagem de calorias, duas fatias de queijo branco, duas torradas médias não muito queimadas, café preto sem açúcar – amargo, mas dava energia e não acrescentava calorias extras- seu mundo era uma redoma de somas, horários, repetições e rotinas. Tudo era anotado e revisado, nada poderia sair do lugar, todas as coisas eram organizadas por ordem alfabética, graduação de cores, ordens crescentes e decrescentes, suas roupas ficavam separadas por dia da semana, até a decoração minimalista da casa sofria uma espécie de ordem geométrica.
Depois de tomar o café, terminou de se vestir, colocou a gravata, ajeitou seu chapéu de feltro italiano, passou no espelho pra uma ultima olhada , ver se tudo estava alinhado, olhou para o relógio, estava estritamente no horário.
Como todos os dias , saiu de sua casa às sete e trinta, chamou o elevador que não veio, começou a suar frio, já estava um minuto atrasado em seus planos diários, sentia calafrios só de imaginar de perder seu trem, que passava na estação as sete e quarenta e cinco, tinha que quebrar sua rotina, usar o plano B - um dia isso teria de acontecer - sem perda de tempo, começou a descer as escadas, sete andares, um número cabalístico que ele fez questão de escolher quando comprou o apartamento. Vencia cada um dos oitenta e quatro degraus que o separava do térreo, contava cada um deles desde que se mudara para lá, pra poder ,em uma emergência, estar preparado para eventualidades como aquela, saber o tempo que levaria para percorrer a extensão de trinta e sete metros em espiral das escadas era essencial em seus planos. Levou um minuto e meio, já estava três minutos atrasado. Chegou finalmente ao térreo, saiu resfolegando, e ficou muito nervoso quando não viu ninguém na portaria - mais atrasos - achou suas chaves, no meio do desespero se xingou por não ter descido com as chaves na mão, como foi tão burro? Abriu a porta passou pelo portão, estava tudo muito quieto, não viu ninguém nas ruas, pensou ser um golpe de sorte não ter nenhum obstáculo no caminho, saiu às pressas em direção a estação que ficava a quatro minutos de sua casa, olhou o relógio, já eram sete e trinta e cinco, ele tinha que diminuir seu tempo de se vestir, pensou seriamente nisso.
Era incrível mas ele não cruzara por ninguém no percurso, não havia carros nas ruas nem os ambulantes que vendiam bugigangas em frente a estação, a sinfonia da metrópole estava silenciada, ele não entendeu o que estava acontecendo, era uma quarta feira como qualquer outra, não era nenhum feriado, ele sabia pois a folhinha dele era revisada todos os dias, só podia ser algum engano.
Chegou à estação, colocou o bilhete na catraca, olhou o horário no relógio digital suspenso perto do guichê central, marcava sete e trinta e nove, estava no horário, olhou para os lados a procura de alguém, ninguém a vista, nem guardas, nem vendedores ambulantes, mendigos ou trabalhadores que dividiam os espaços dos vagões com ele todos os dias de manhã. Já estava em pânico, o que havia acontecido? Onde estavam todos?
Parou em frente a um bebedouro, tomou três goles de água como era seu costume, não antes de fazer um jato de água sair e limpar qualquer vestígio de alguém que tenha bebido antes dele, olha a hora ,o trem não aparece, suas pernas estão bambas, estava pela primeira vez na sua vida atrasado, ele não se preocupava com o mundo a sua volta estar deserto, não se preocupava com a ausência das pessoas, dos veículos e da agitação, ele só se preocupava com seu horário, que o torturava, estava se atrasando, precisava ser rápido, já tinha perdido mais de cinco minutos, na espera inglória de seu trem.
Saiu da estação, faltava apenas nove minutos para as oito , ele tinha quarenta minutos apenas para estar no escritório que ficava à onze quilômetros e quarenta e cinco metros de onde estava.
Ele estava passando por um dia difícil, algo estava acontecendo e ele não sabia explicar, seguiu caminhando por ruas e mais ruas, com o passo apertado, não cruzava com ninguém, todos haviam sumido a cidade parecia imersa em um claustrofóbico torpor, a cidade estava fantasmagóricamente vazia, as lojas estavam abertas, mas não havia ninguém dentro delas, não via nenhum movimento na rua, nem cachorros e gatos vadios, todos haviam sumido, passou pelo viaduto principal do centro, que normalmente milhares de pessoas aglomeravam-se durante o dia todo, não havia nada, só papéis voavam displicentemente sem dar atenção a seu único espectador.
Descia as avenidas e esquinas, estava sendo vencido pelo cansaço, e não tinha andado nem um quarto de todo caminho.
Viu vários carros parados em todas esquinas, garagens e ruas, resolveu fazer algo que nunca havia passado por sua cabeça antes, roubaria um carro, afinal, ele não podia chegar atrasado, e pelo jeito ninguém reclamaria se colhesse um carro naquela seara de automóveis que se ali se apresentava. Escolheu pela cor que mais gostava, branco, como todos seus móveis. Tinha que achar o modelo certo, já era oito e vinte tinha só dez minutos, pegou um carro importado, que segundo havia lido fazia de zero a cem em quinze segundos.
Entrou, a porta estava aberta e a chave na ignição, ligou o carro e saiu em disparada pela rua, talvez fosse a potência do motor, talvez fosse toda situação, ou simplesmente seu primeiro gosto de liberdade, ele estava livre das imperfeições mundanas, acelerou até cento e cinquenta por hora, cruzava as avenidas voando, tudo estava vazio, a cidade estava a sua mercê, ele nunca, nem em seus devaneios mais profundos, havia imaginado a cidade tão ordenada, sem a massa viva e disforme que causava aquele caos que ele era obrigado a conviver diariamente, os seres humanos eram imperfeitos demais, nunca conseguiriam seguir uma ordem satisfatória de atos realmente civilizados. Mas agora ele estava livre, tudo seria organizado, haveria muito mais coerência e lógica, não haveria mais aquele rebuliço do cotidiano, a vida seria matematicamente pensada.
Divisa ao longe o prédio do escritório onde trabalha, pouco depois estaciona de forma perfeita, na vaga em frente à entrada, em um dia normal, aquilo ali estaria abarrotado de veículos, pessoas e guardadores.
Saiu do carro, estava faltando apenas um minuto, se ele se apresasse conseguiria bater seu cartão de ponto no horário certo. Subiu o pequeno lance de escadas da portaria, adentrou no hall, foi até seu cartão, esperou sete segundos até a hora estar correta, em seguida ouviu o clique da maquina registrando sua entrada.
Subiu até seu escritório, estava vazio como a cidade a sua volta, pegou seus papéis, apontou seus lápis e assinou duplicatas como se nada tivesse acontecido, tudo estava perfeito, não haviam erros ou desarranjo, as pessoas não faziam a menor falta, elas só atrapalhavam, tudo estava silencioso.
Foi até a pequena copa, fez um café do jeito que ele gostava, tomou uma xícara, voltou a sua mesa, despachou sozinho, fez planilhas, somas, cálculos, almoçou em dezessete minutos, um dia produtivo como nunca havia tido antes.
Seis horas da tarde, ele pega suas coisas, sai para bater o cartão, quando ouve o clique da maquina acusando o final do dia , um zumbido insistente começou a soar na cidade, um zumbido alto e insistente, que começou a ganhar mais intensidade.
Ele sai rapidamente para a rua, tapa os ouvidos para tentar impedir o barulho, mas é muito agudo e renitente, sua calmaria estava sendo abalada por aquele som mecânico. Entra no carro, liga o motor e acelera, o ronco do motor não atenua o zumbido que agora parece mais uma sirene.
Enquanto desce a avenida para ir embora, começa ver todos os prédios ruirem, uma grande catástrofe estava em curso, ele estava desesperado, não conseguia pensar, ver alguma lógica naquilo, estava tudo fora de controle e o zumbido estava cada vez mais insuportável. Já estava atravessando a ponte quando os blocos de concreto armado iam-se desfazendo atrás dele, acelerou o carro como um louco, parou em uma rua logo após a ponte que terminava de se desintegrar.
O zumbido estava mais forte, saiu do carro, e no alto de um arranha-céu ele avistou uma luz vermelha que inundava os destroços e as poucas marquises que ainda estavam de pé, tentou proteger os olhos e ver de onde vinha a tal luz, de repente, ele sente o ar sumindo de seus pulmões, vê seu carro e tudo a sua volta se dissolver como areia em meio ao brilho vermelho e ao som estridente. Cai de joelhos, imerso nos escombros de seu mundo que tinha sido perfeito, estava morrendo sufocado, olhou para seu relógio, estava marcando seis horas e cinco minutos, 300 segundos, foi o tempo que levou para seu sonho se desmoronar, estava soltando seu ultimo suspiro, quando sorriu, pensando que pelo menos durante esse pequeno espaço de tempo, de um dia de trabalho, tinha conseguido se sentir livre e feliz, como nunca antes em sua vida, ele arranca o relógio do pulso, segura firmemente em suas mãos, seu corpo cai inerte em meio a poeira dos prédios que iam desmoronando, a luz vermelha estava esmaecendo, o som também ia sumindo, o corpo dele com um sorriso no rosto ia sendo coberto por uma camada grande de fuligem e sujeira, o relógio tinha parado e também começou a se desmanchar, a única coisa que não havia se transformado em pó era o corpo dele.
Pela primeira vez ele tinha atrasado, tinha perdido a hora de partir.

Por cleiner micceno

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