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Saia da minha casa! Julia disse gritando, um grito agudo como uma doninha encurralada guinchando.
- Ainda é cedo. Afirmei de modo lacônico como a ocasião pedia, mas nem tudo que falamos chega ao interlocutor da mesma forma que imaginamos. Então ela agilmente arremessa um prato em minha direção com a agilidade de um ninja daqueles filmes ruins de sessão da tarde, mas, por sorte ela não tem a mira deles e o prato passou zunindo pela minha cabeça e se chocou na parede da sala.
- Porra! Esse prato é a mais pura louça da china! Sei lá, acho que um dia isso queria dizer alguma coisa, mas não atualmente pelo que notei.
- Tem muitos mais de onde veio esse se você quer saber, minha mãe pegou uma promoção na loja de 2 reais!
- 1 e 99! Bradei como um pastor da igreja universal.
E a ninja do apartamento 22 recomeçou o ataque, ela arremessava cada vez com mais rapidez e para minha alegria, com pior pontaria.
- Mas meu docinho... Pulei para trás do sofá enquanto argumentava.
- Meu docinho a puta que o pariu! E ela arremessou com mais raiva ainda.
Com os pratos ribombando próximos de mim eu só imaginava quanto a mãe dela tinha de grana no dia que comprou os pratos, não é possível, não acabavam mais.
- Meu amor, vamos conversar como duas pessoas civilizadas! Gritei de minha trincheira atrás do sofá.
-Meu amor o cacete, vai falar isso para aquela vagabunda...
Ai eu me irritei. – Vagabunda não, ela é muito religiosa! Gritei isso e corri para meu abrigo anti-pratos.
- Ah claro santinha do pau oco, do pau e do oco pelo jeito! Achei isso uma coisa espirituosa. Vou usar algum dia.
- Mas você está tirando conclusões precipitadas... Disse no melhor tom que consegui encontrar. Os pratos pararam por alguns segundos, ela havia dado uma pausa, ou porque estava refletindo sobre o que eu disse, ou havia acabado finalmente a munição comprada pela sogra. Resolvi olhar de forma bem cuidadosa por cima de meu bunker. Coloquei os olhos por cima do sofá e vi uma caneca voar quase do meu lado. Droga agora começou a munição reserva.
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Ela estava gritando alguma coisa impronunciável e entre um guincho e um arremesso e outro ela falava:
- Sa...fa...do , conclusão... precipitada ... filho da... puuuuuuttaaaaaaaa...
Entre esse lindo dialogo ouço alguém bater na porta de forma bem pouco educada e berrar.
- Polícia abra essa porta... Ou vamos arrombar...
Eu levantei com cautela. Ela estava na cozinha, provavelmente procurando mais presentes da mãe, para me jogar. E numa demonstração de agilidade Shaolin... Sim eu sei, tenho de parar de ver filmes ruins... Me adiantei e abri a porta arrumando os cabelos e tentando fazer a melhor cara possível.
- Boa tarde Seu guarda, o que podemos ajudá-lo?
Ele não foi muito gentil, abriu a porta num safanão e entrou com mais dois gorilas fardados.
- Ouviram gritos e muito barulho aqui no seu apartamento e nos chamaram para atender a ocorrência. O que esta acontecendo aqui?
Enquanto o policial falava ele analisava a situação da sala de guerra, era difícil dar uma desculpa decente.
- Estávamos treinando para o casamento judeu de um amigo nosso... Vocês sabem né sempre se quebram pratos em casamento judeu...
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- É casamento grego que se quebra prato. Falou um dos gorilas.
- Como você sabe disso cabo? Perguntou o policial que me interrogou antes, ele devia ser o chefe da matilha.
- É que eu já fiz bico de segurança em um casamento grego. Falou meio sem jeito de forma meio envergonhada.
- E o judeu você quebra um copo, alguém pisa em um. Retorquiu o outro gorila que estava com arma em punho.
- E você como sabe disso? De novo o chefe.
- Ah trabalho de garçom em bufê nos dias de folga, sabe como é né, o soldo não é grande coisa né sargento.
- Que maravilha e nunca me convidam para essas coisas, vocês sabem que eu gosto de comidas exóticas...
Nisso a ninja do apartamento 22 sai aos prantos da cozinha e entra na sala correndo e chorando. Os policiais apontam as armas para ela, que para de supetão. Ela parara de chorar e com muita calma, já com as mãos erguidas no susto, começa argumentar polidamente com os policiais com a voz mais doce do mundo. Uma pequena pausa aqui, como uma mulher consegue acelerar de 0 a 300 em segundos e depois para 0 de novo como se fosse a coisa mais simples do mundo. Acho impressionante isso. Bem voltemos ao que interessa.
- Por favor policiais, desculpem terem perdido seu tempo, nós só estávamos tendo uma discussãozinha aqui...
- Por causa do casamento grego? Perguntou o cabo.
Ai ela caiu em prantos de novo.
- Que casamento grego que nada, esse filho da... mãe aí... peguei ele acariciando a filha da faxineira quando cheguei em casa...ela estava toda assanhada... se contorcendo enquanto ele estava com as mãos nas costas dela...
- Isso procede cidadão? Perguntou o sargento para mim com cara de desaprovação. Pô justo agora que já achava que tínhamos ficado amigos ele me chama de cidadão.
- Não foi bem assim capitão. Sempre bom aumentar divisas nessas horas. – Sabe como é, ela nem deixou explicar... A menina coitada saiu daqui correndo debaixo de tapa e nem tivemos tempo de nos explicar...
- Bom agora é uma boa hora... Disse o sargento ele deve ter gostado do capitão.
- Bem a pobrezinha tinha se enroscado nos enfeites pendurados, enquanto limpava a estante... E eu fui apenas ajudá-la, sabe como é né... Sou um cavalheiro.
- Você é um mentiroso! Gritou a ninja.
Pelo menos os ninjas da sessão da tarde são silenciosos.
- Claro que não meu doce de coco, é que você viu de um ângulo que não fazia jus a realidade e você se precipitou.
Ela estava emburrada e com cara bem pouco amigável. E a cumplicidade masculina, que é um dom divino, uma coisa como as leis da natureza, tão inerente a sobrevivência da espécie desde seus tempos imemoriais, veio em meu socorro.
- Bem então vamos fazer a reconstituição do suposto crime e tirar a prova disso já ...
- Como assim? Ela perguntou estupefata.
- Simples vamos reconstituir a cena e daremos o veredito, se ele está falando a verdade ou não. O sargento disse isso e olhou magnânimo com o rei Salomão.
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- Soldado Tavares vá lá, você vai ser a filha da empregada...
- Pô justo eu sargento? E foi resmungando perto da estante.
- Vá lá você... Apontando para mim. – Fique onde você estava e coloque o soldado Tavares no lugar que a menina se enroscou... E a senhora ai vai lá para a porta, vamos organizar isso.
E lá fomos todos nós para os lugares, sendo dirigidos pelo Spielberg da Vila Mariana.
- Todos à postos?
-Sim. Gritamos em uníssono.
- Então... Ação! Ele tava levando isso bem a sério, me senti até o Tom Cruise.
O soldado Tavares tinha se enroscado em alguma coisa da estante para dar veracidade ao personagem e eu fui lá desenrosca-lo. Mas não acho que fiz bem o papel, faltava estímulo, sei lá, a filha da empregada era mais inspiradora. Bem me empenhei o melhor possível com o enredo e com o elenco presente, mas, acho que não ganharia um Oscar, acho que nem um Kikito. Pelo menos fui convincente, o diretor também não era muito exigente. A Julia, ou melhor, a ninja, viu de novo a cena e notou que a montagem era bem parecida com a original que ela presenciara meia hora antes e teve que capitular, e confessar que ela poderia estar enganada.
- É policial, acho que me precipitei mesmo... Confesso que realmente acho que exagerei...
- Sim senhora, mas é nossa função também tentar resolver as coisas da melhor forma possível, nem só de prender pessoas a gente vive.
- Tudo bem, agradeço ao senhor, eu ofereceria um café para compensar tudo que fez pela gente, mas acho que não tenho mais xícaras...
- Ah não temos luxo não pode ser em copo mesmo... Disse o soldado Tavares ainda se desvencilhando da estante, derrubando uns badulaques que foram presentes da mãe de Julia. Pensando nisso agora, será que essa velha só compra essas promoções?
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Bem depois de uns dez minutos e um cafezinho em copos de plástico e uma caneca do Mickey que havia sobrado. Fui acompanhar os valorosos policiais até a porta, só ouvi o sargento falando no caminho para o elevador:
- Porra Tavares você tem que me avisar quando tiver mais desses casamentos gregos, pode me chamar para uns troianos também, não ligo não...
Fechei a porta e fui ajudar Julia a recolher os cacos no chão, ela estava bastante triste. Ela olhou para mim e veio pedir desculpas, me deu um abraço forte e eu falei:
- Calma docinho, está tudo bem, você não precisa ser tão impulsiva, tem que se controlar mais só isso.
- Eu sei, eu sei, você desculpa esse meu gênio terrível?
- Claro que sim, agora está tudo bem. Enquanto dizia isso eu estava imaginando onde seria a loja que a mãe de Julia achou a promoção de pratos, to meio sem grana e os pratos são resistentes... E também preciso ligar para a filha da empregada e marcar de ver a tatuagem que vai das costas até o meio das coxas, que ela ia me mostrar bem naquela hora que Julia chegou, afinal fiquei curioso.
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Escrito por Cleiner Micceno